Mesmo em uma sociedade majoritariamente negra, a população afrodescendente no Brasil é invisibilizada. Os negros continuam fora dos grandes cargos. Têm menos espaço nas prestigiadas instituições de ensino. E, até hoje, são pessoas que não aparecem com devida importância na história brasileira. Para fazer um contraponto a isso, o cantor, compositor e escritor Nei Lopes se propôs a escrever o livro Afro-Brasil reluzente: 100 personalidades notáveis do século XX, lançado pela editora Nova Fronteira.
 
 
Com quase 500 páginas, a obra é um compêndio da trajetória de 100 personalidades afro-brasileiras, muitas delas desconhecidas do grande público, apesar de sua relevância e importância em diferentes aspectos e áreas, por terem sido “apagadas” com o passar dos anos. Nei fez questão de buscar nomes que conversassem tanto com o passado quanto com o presente. O processo de produção do livro durou seis meses, um tempo pequeno, mas que pôde ser concluído graças às pesquisas anteriores do escritor, que, em 2004 e em 2011 lançou versões da Enciclopédia brasileira da Diáspora Africana.
 
Inicialmente, o autor chegou a 150 nomes, que, depois, foram reduzidos para 100. “Os nomes dos que ficaram de fora estão guardados, para, quem sabe, um segundo volume”, afirma. Sobre a decisão de escrever o livro, ele diz: “É importante salientar o protagonismo negro não com exemplos isolados, sem consequência, mas coletivamente, para dar mais força a essa presença e aumentar a autoestima do povo negro, sobretudo nos mais jovens”.
 
Na obra, perfis de Conceição Evaristo, Cartola, Alzira Rufino, Mãe Stella de Oxóssi, Maju Coutinho, Martinho da Vila, entre outros. Na entrevista a seguir, Nei Lopes explica a concepção da obra e a importância da publicação, além de comentar a conjuntura do país.
 
O senhor fala logo na introdução do livro Afro-Brasil reluzente que a ideia partiu de dar importância aos negros e negras notáveis que costumam ser ignorados e invisibilizados na história brasileira. Qual é a importância da representatividade e de saber a própria história?
 
Nos currículos do ensino de história prioritariamente adotados no Brasil, a África ainda ocupa um lugar obscuro, sendo sempre objeto e nunca sujeito. Mas se não houvesse África, não teria havido a Revolução Industrial e nenhum país europeu nem os Estados Unidos existiriam como grandes potências. Quando os primeiros europeus lá chegaram, o continente já tinha construído civilizações muitíssimo importantes. Enquanto o conhecimento disso continuar sonegado, a África vai continuar sendo vista por meio dos estereótipos difundidos nos filmes de aventura e pelas histórias em quadrinhos. No Brasil, após toda a violência do escravismo, os direta ou indiretamente atingidos ainda foram submetidos a procedimentos verdadeiramente genocidas, como os que tinham como objetivo “embranquecer” a população brasileira. E com esses procedimentos foi se apagando, até a invisibilidade, a importância das civilizações africanas na formação do Brasil. A partir daí, moldou-se uma imagem de inferioridade dos afrodescendentes. Por isso é importante salientar o protagonismo negro não com exemplos isolados, sem consequência, mas coletivamente, para dar mais força a essa presença e aumentar a autoestima do povo negro, sobretudo nos mais jovens.
 
Como foi o processo de decidir quem seriam essas 100 pessoas?
 
O primeiro critério foi o das histórias de vida. O segundo foi o da singularidade das atuações dos focalizados, áreas fora daquelas do “lugar de negro”, tais como música, esportes e entretenimento em geral. Depois, tentamos o equilíbrio por gêneros, mas o número de personagens biologicamente masculinos ainda permaneceu.
 
Entre os nomes, há personalidades bastante conhecidas, mas também algumas que tiveram menos projeção. Houve uma intenção sua de buscar nomes que fossem extremamente conhecidos e aqueles que foram mais invisibilizados ao longo da história?
 
 
Houve, sim, porque o livro também é um item de consumo. Mas não há, para mim, nenhum exemplo em que a importância do focalizado suscite alguma dúvida.
 
Como foi o processo de pesquisa para escrever sobre cada uma das personalidades? O senhor chegou a fazer entrevistas com as personalidades ainda vivas?
 
Desde mais ou menos 2000, quando comecei a produzir a Enciclopédia brasileira da Diáspora Africana, lançada em 2004 por Edições Selo Negro, reuni um banco de dados biográficos bastante significativo, que alimento a cada dia com vistas a atualizações, já que a edição mais recente é de 2011. Parte desse acervo foi utilizada agora, mas fui também ajudado por algumas pesquisas complementares de que a Editora Nova Fronteira se encarregou.
 
O senhor teve que deixar gente de fora? Gostaria, por exemplo, de fazer uma sequência?
 
A listagem inicial reuniu quase 150 nomes. Daí tivemos que ir excluindo, a partir, principalmente, daqueles que, embora tivessem currículos de atividade expressivos, não tinham histórias de vida conhecidas. E, como o tempo de preparação do livro era curto, cerca de seis meses apenas, não conseguiríamos, naquele momento, fazer pesquisas mais demoradas. Os nomes dos que ficaram de fora estão guardados, para, quem sabe, um segundo volume.
 
Na sua carreira, há um equilíbrio entre a música e a literatura. Como o senhor faz para equilibrar esses dois lados artísticos?
 
Na atualidade, tenho publicado mais livros do que gravado canções, mas não estou parado. Em 2016, por exemplo, recebi um Prêmio Shell pela trilha sonora do espetáculo Bilac vê estrelas, de Heloisa Seixas e Julia Romeu, encenado no Rio de Janeiro e em São Paulo. Além disso, em meus 48 anos de carreira como compositor popular, reuni um repertório de canções ainda inéditas maior ou quase do mesmo tamanho do muito que gravei até hoje, com intérpretes de grande prestígio. Então, tudo se equilibra: há o tempo para o livro e há o tempo para a música...
 
O senhor é uma figura extremamente importante na luta contra o racismo e pela visibilidade negra. E, apesar de alguns avanços nos últimos anos, temos vivido tempos difíceis com o aumento da intolerância. Como o senhor avalia esse momento? O que podemos fazer para ir contra essa maré?
 
O que está acontecendo, só não vê quem não quer. O que cabe a cada um de nós, que não concordamos com esse estado de coisas, é, brandindo a Constituição Federal em vigor desde 1988, nos fortalecermos na defesa do que lá está escrito, sobretudo nos capítulos relativos aos direitos humanos, ao meio ambiente e à cultura. O direito, como aprendi, é a arte de garantir a cada um o que efetivamente lhe pertence. E os ancestrais africanos da pátria brasileira foram o alicerce sobre o qual se construiu este país, pelo menos até o advento da República. E, por isso, nós afrodescendentes temos direito, pelo menos a parte do que diz respeito a essa construção, que não é nem um pouquinho desprezível. A civilização brasileira não é tão judaico-cristã como andam dizendo por aí.
 
Após Afro-Brasil reluzente, o que o senhor tem em vista lançar neste ano?
 
Para este ano já tenho no prelo o segundo volume do Dicionário de história da África, parceria com José Rivair de Macedo, da UFRGS; um livro sobre Ifá, uma das vertentes da religiosidade africana nas Américas; e estou desenvolvendo com o magnífico ilustrador Rui de Oliveira – aliás, um dos 100 focalizados em Afro-brasil reluzente – um livro sobre uma das maiores personalidades da cultura afro-brasileira entre os séculos 19 e 20. Está previsto para este ano.