O HABEAS CORPUS DO MINISTRO
Somente no âmbito da operação no Rio, foram 21 presos liberados pelo ministro até a sexta-feira passada
Ele já teve a conduta questionada pelo Ministério Público Federal do Rio, suas decisões foram alvo de recursos pela Procuradoria-Geral da República (PGR), virou meme na internet e teve o nome xingado em manifestações populares. Alheio a qualquer tipo de crítica, o polêmico ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes continua concedendo habeas corpus a presos na Operação Lava-Jato e em outras ações policiais vinculadas a ela. Somente no âmbito da Lava-Jato no Rio, foram 21 presos liberados por Gilmar até a sexta-feira passada.
Seja nos julgamentos, seja nas manifestações públicas, o ministro não se cansa de repetir a defesa da importância de a Justiça garantir todos os direitos de réus em investigações e ações penais. “Se nós estivermos sendo muito aplaudidos porque estamos prendendo muito, porque negamos habeas corpus, desconfiemos, nós não estamos fazendo bem o nosso job (trabalho). Certamente falhamos”, afirmou Gilmar Mendes durante evento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre ativismo judicial.
Afinal, o que diz a legislação brasileira sobre as prisões? Aí está o problema: muito pouco. “As leis que tratam das prisões preventivas e temporárias são muito vagas. Fica por conta dos juízes decidirem se prendem ou não. Não é uma questão legal, mas de padrão. Vemos que o Moro (Sérgio Moro, responsável pela Lava-Jato em Curitiba) e Bretas (Marcelo Bretas, juiz responsável pela Lava-Jato no Rio) adotam um padrão. O Gilmar Mendes, outro”, diz o jurista e professor de direito e processo penal Luiz Flávio Gomes.
A prisão preventiva está prevista no artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP), e dever ser decretada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. Já a prisão temporária é regulamentada pela Lei 7.960/89, e deve ser adotada quando for “imprescindível” para as investigações, o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos para esclarecimento de sua identidade ou quando houver “fundadas razões”.
“Ora, a partir desses artigos você pode prender todo mundo ou soltar todo mundo”, lamenta Luiz Flávio Gomes. Na avaliação do jurista, a análise da necessidade de uma prisão deve ser pautada também pelos “valores” adotados em uma sociedade. “O ministro Gilmar Mendes parece que ainda não entendeu que vivemos em um país extremamente ladrão. Para ele, essa roubalheira não tem significado social”, continuou.
Segunda instância Apenas a prisão a partir de condenação pela segunda instância da Justiça está pacificada – pelo menos por enquanto. Ao julgar um pedido de habeas corpus preventivo apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a maioria dos ministros do STF votou pela prisão antes de a sentença transitar em julgado, ou seja, ainda que caibam recursos a instâncias superiores. Esse entendimento, por exemplo, levou para a cadeia o ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo (PSDB).
Na ocasião, Gilmar Mendes votou contra a prisão em segunda instância – e inclusive abriu divergência durante o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. O ministro propôs uma solução intermediária para o momento de execução da pena de prisão, que passaria a ser permitida apenas após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele ainda teve que dar explicações sobre a mudança de postura: em 2016, Gilmar havia entendido que o cumprimento da pena após a segunda instância era compatível com a presunção de inocência. No entanto, desta vez, disse que uma “reflexão” o fez mudar de opinião.
MPF quer impedimento
Para integrantes do Ministério Público e colegas de toga, algumas das decisões do ministro Gilmar Mendes vão além de uma mera interpretação particular do que diz a lei. Na quarta-feira passada, por exemplo, o Ministério Público Federal, no Rio, enviou à Procuradoria-Geral da República ofício em que requisita o pedido de impedimento ou suspeição do magistrado em processos envolvendo o ex-presidente da Federação do Comércio do Rio (Fecomércio-RJ) Orlando Diniz. O empresário, que é acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, estava preso desde fevereiro e foi solto em 1º de junho.
Os procuradores fluminenses não têm dúvidas da ligação do ministro com Diniz. A quebra do sigilo fiscal da Fecomércio-RJ revelou um pagamento de R$ 50 mil, em 2016, ao Instituto Brasiliense de Direito Público, que tem o ministro entre seus sócios-fundadores. Entre os eventos promovidos pelo IDP de 2015 até 2017, pelo menos três foram patrocinados pela Fecomércio-RJ: um no Rio de Janeiro e dois em Lisboa.
Ao conceder o habeas corpus a Diniz, Gilmar afirmou não ser “justificável” uma prisão por um suposto crime praticado sem violência ou grave ameaça. O juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, rebateu, dizendo que a corrupção não pode ser classificada como um “crime menor”.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, defendeu que o plenário do STF avalie se Gilmar Mendes pode ser relator de casos ligados à Operação Ponto Final – braço da Lava-Jato no Rio e que desbaratou uma máfia no setor de transportes envolvendo desvio de R$ 260 milhões em propina a políticos. O Ministério Público Federal alega que Gilmar Mendes tem vínculos pessoais com alguns dos réus, como o empresário Jacob Barata Filho. Em 2013, o ministro foi padrinho de casamento de Beatriz Barata, filha do empresário.
Em 17 de agosto do ano passado, Gilmar Mendes deferiu o pedido liminar do habeas corpus para substituir a prisão preventiva de Barata Filho por medidas cautelares. Quando o habeas corpus chegou ao STF, foi distribuído por prevenção a Gilmar, após decisão da presidência do órgão. Um novo pedido de prisão, em outro processo respondido pelo empresário, foi decretado no mesmo dia. A medida foi revogada no dia seguinte, 18 de agosto.
Em maio do ano passado, outro HC concedido por Gilmar foi questionado pelo então procurador-geral Rodrigo Janot, desta vez envolvendo o empresário Eike Batista. O argumento foi que a esposa de Gilmar, a advogada Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima, é sócia do escritório Sérgio Bermudes Advogados, que representa Eike nas ações das áreas empresarial, comercial e trabalhista. Na esfera penal, no entanto, quem defende Eike é o advogado Fernando Teixeira Martins. (IS)