Policiais relatam as primeiras horas após o ataque que deixou 14 pessoas mortas e centenas de feridos

Barcelona
Exatamente um ano atrás, Sergi, um guarda urbano com dois anos de experiência, atendia alguns turistas no trecho superior da Rambla, a célebre alameda de Barcelona, na Espanha, quando ouviu um estrondo e viu um furgão invadindo o calçadão. Diz que o condutor gritava “como um louco” e ia tão depressa que os pneus saíam do chão. Foi o primeiro agente a avisar por rádio: “'Atentado, atentado!”. Seu colega Joaquín Ortiz, que estava diante do teatro Liceu, cerca de 500 metros abaixo, olhou Rambla acima e viu o veículo em marcha, atropelando pessoas que saíam voando por cima do teto, uma pequena explosão, e fumaça branca. Sergi e outros dois agentes saíram no encalço do furgão, numa impotente corrida que acabou subitamente, porque o veículo quebrou sobre o colorido mosaico de Joan Miró. O coração do cenário de um crime com 80 metros de comprimento, que deixou 14 pessoas mortas e centenas de feridos.

José Almendros, o Churru, que trabalha na delegacia dos Mossos d’Esquadra (polícia catalã) na rua Nou de La Rambla, estava então no bairro da Barceloneta registrando uma denúncia de roubo feita por alguns jovens franceses. Os turistas captaram a mensagem que o rádio lhe transmitia. “Com o olhar, me disseram: ‘Vai, vai!’”. Seu colega Alberto Sánchez, o Pesca, subia na moto de patrulha junto com o sargento José González. Entraram pelo calçadão central da Rambla e frearam para não atropelar a avalanche de gente que vinha para cima deles. O mesmo fator impediu Ortiz de seguir o terrorista. E, a partir daí, veio o horror, que ainda lhes gera soluços, pesadelos e lágrimas.

A vida, conta Churru, continuava com uma assustadora naturalidade no Paseo Colón, alheio à catástrofe. Alberto correu para o mosaico pensando em esvaziar o carregador. Não chegou a ver Younes Abouyaaqoub, o autor do massacre. A primeira imagem foi de uma senhora sem vida encaixada na caminhonete, e um carrinho de bebê sob as rodas. “Uf! Olhei desejando que não tivesse ninguém. Por sorte foi assim”, diz. Abriu a porta do passageiro e viu os passaportes que “queríamos que encontrássemos”. Àquela altura, Marc Rovira, da delegacia do Eixample, um bairro vizinho, já tinha desviado o carro e topou na rua Pelai, que chega à Rambla, com táxis vindo na contramão. Talvez Abouyaaqoub já tivesse fugido pelo mercado da Boqueria. Os garçons do bar Universal estavam escondidos no porão, e Mònica Trias, que trabalha em outro quiosque, se refugiara numa farmácia. A mesma cena se repetiu em dezenas de locais. Ada Colau, a prefeita de Barcelona, voltava às pressas da sua casa rural para a cidade.

O centro virou um corre-corre, e a tragédia se petrificou sobre o mosaico. O calçadão da Rambla se estreita bem ali, e ainda por cima há quiosques comerciais de ambos os lados. Um deles não voltou a abrir. Os mossos e guardas urbanos admitem que desligaram o modo polícia e passaram a socorrer os feridos. Muitas das suas armas acabaram manchadas de sangue. Não foi possível seguir o protocolo que recomenda que ninguém se aproxime a menos de 200 metros. “Um comandante me disse que a caminhonete estava limpa”, admite o sargento. “Não contei aos agentes para não baixar a tensão, e porque tampouco sabia se havia mais explosivos em cestos de papéis, por exemplo.” A realidade, dizem, era a que havia. “Como não ajudar alguém que puxa a sua calça com uma perna quebrada?”, alega o guarda Ortiz.

Alberto fez uma primeira contagem: uma dezena de mortos. “O mais duro foi fazer uma triagem para ver quem você podia ajudar ou não”, relembra-se, aludindo à cena de um menino que ficou com seu pai já sem vida. Havia centenas de pessoas. Eram necessárias muitas ambulâncias. Não era fácil, porque havia carros abandonados na Rambla, e alguns deles, com placas espanholas, foi preciso retirar no braço. Os franceses pelo menos deixaram as chaves. Um táxi ficou como estava: à noite, seu taxímetro marcava 1.700 euros.

Marc vivia um momento crítico na Rambla de Canaletas, o trecho superior do bulevar. Um menino oriental, não se sabe se chinês ou coreano, escapou do bar Aromas de Estambul, dizendo que havia lá dentro três árabes com armas grandes. A persiana estava baixada. O dono, de dentro, negou, mas não podiam lhe dar credibilidade, pois poderia estar ameaçado. “Houve uma tensão muito, muito extrema”, recorda Marc. Agentes do Grupo Especial de Operações dos Mossos cercaram o local e, entrincheirados e armados, obrigaram os clientes a saírem do local com as mãos para cima e deixando o celular no chão. Alguns eram muçulmanos.

Não foi só o turista oriental que se enganou. O sargento conta que o suposto tiroteio na loja de departamentos El Corte Inglés foi o desabamento de uma estante, e que tampouco houve um franco-atirador de turbante nos telhados. Era um operário. O mosaico foi então desocupado por alguns minutos, e policiais e médicos foram confinados no alpendre do Liceu. Alberto ficou sozinho, entrincheirado atrás de uma ambulância. Não teve tempo de chegar no teatro. Mas não se lembra de nada: “Quem me contou foi uma colega. Ela me disse: ‘Juro que era você’”. Os agentes da Guarda Urbana, pistola em punho, evacuaram o mercado da Boqueria e varreram os corredores por onde, minutos antes, o terrorista fugira caminhando.

Um mosso sofreu um choque ao ver um menino ferido. José Almendros estava naquela hora ajudando um casal francês, retido na portaria de um prédio da rua Sant Pau, a encontrar seus filhos dispersos. Renaud, o pai, que sobreviveu, estava em estado grave. “Um senhor de Israel, que não encontrava sua mulher e sua filha, pegou uma das crianças e me disse que cuidaria dela. Que não me preocupasse, que no seu país estão acostumados a essas situações de guerra”, conta, com a voz embargada. Quando reagruparam a família, mandou o turista israelense para o seu hotel. “De uma banca de jornais saiu uma mulher que disse ser daquele país. Eu lhe disse que seu marido estava bem. Chorou, me agradeceu e me abraçou.”

Durante a tarde, os mossos encaminharam os feridos menos graves. As ambulâncias não davam conta. Alberto fez uma dúzia de viagens ao Hospital del Mar e ao posto de saúde Pere Camps. Depois, ajudaram a desalojar as lojas, após revistá-las para tentar encontrar eventuais terroristas escondidos, e escoltaram as pessoas para longe da Rambla. As testemunhas que tinham visto algo eram conduzidas para depor no centro de operações montado fora dali. “Quando subíamos as persianas e viam que éramos policiais, pareciam que viam deuses. É a única vez você que diz ‘mãos para o alto’ e obedecem”, conta. “Para as crianças, acariciávamos as suas cabeças e dizíamos que não precisavam [chorar]”, acrescenta Churru.

Às 20h, Albert e Marc, amigos e colegas de formatura, se encontraram. Um olhar, um abraço, e choro. “Àquela hora já podíamos nos dar esse luxo”, dizem. Depois coube a eles, relata o sargento, balizar e proteger a longa “cena do crime”. Um cenário vazio e em silêncio. O melhor, concordam, foi a reação das pessoas. O Hard Rock lhes deu café, macarrão e água, e ambulantes paquistaneses ofereciam caixas com água e frutas. Também viram colegas que interromperam suas férias por conta própria: teve gente que pegou um avião de Granada, no sul da Espanha, e outro que regressou de Soria, no centro-norte do país. A sensação de que a corporação se graduou. E, o pior, precisa conviver com uma lembrança que pesa como uma laje. Alberto esperou até julho deste ano para ouvir a mensagem que mandou naquele dia à sua família dizendo que estava bem. Churru chora quando se lembra que uma agente dos mossos lhe contou que o pai de Xavi, o menino morto, levou à delegacia de Rubi, no interior da Catalunha, um carrinho de polícia que havia sido do seu filho. O brinquedo continua ali. Muitos guardas urbanos receberam assistência psicológica. Os mossos, menos. Suas famílias, admitem, são as que mais sofrem. “As pessoas às vezes acham que ser polícia é uma atividade das 5h30 às 14h30, que é uma encenação e um disfarce que fica por ali mesmo. E não é verdade”, diz o sargento, sobre o horror vivido no mosaico. “Você leva tudo para casa.”