“Kerry, agora, não terá mais nada para esperar”, diz Simon La Frenais. Britânico, filho de imigrantes do Sri Lanka, 52 anos, ele é do tipo que costura para dentro. Por fora, sempre sereno. Por dentro, às vezes um turbilhão. Ele está a bordo do navio de cruzeiro Arcadia, que deve chegar a Southampton, na Inglaterra, na manhã deste domingo de Páscoa, 12 de abril. A última vez em que os passageiros sentiram terra embaixo dos pés foi na Austrália. O capitão afirma que o coronavírus o levou a um recorde para um navio de cruzeiro: 31 dias sem pisar no chão. Logo Simon estará sozinho com uma mulher numa cadeira de rodas no porto de um país que se aproxima dos 10 mil mortos por Covid-19. Este é o redemoinho que agita as águas interiores de Simon, enquanto ele esboça um quase sorriso para Kerry, 47 anos. Esta não era uma viagem, para eles. Era uma vida.

Para quem vê a face do mundo mudar em meses, o drama de Simon e Kerry é poeira. Os navios de cruzeiro se tornaram vilões da pandemia de Covid-19. Grandes shoppings flutuantes com pessoas ricas carregando o novo coronavírus pelo mundo. A realidade, porém, é sempre um pouco mais intrincada. Nem apenas ricos viajam em cruzeiros ―os realmente ricos, aliás, têm seus iates e jamais se misturariam. Quem embarcou num cruzeiro no início de janeiro, como Simon e Kerry, foi abalroado por um outro tipo de iceberg. Não poderiam prever que o mundo estava prestes a se convulsionar por um ser que nossos olhos nem mesmo são capazes de enxergar.


Simon e Kerry, ex-bancários, são o próprio exemplo de que nem só ricos viajam em cruzeiros. Mas Simon está consciente de que, como ele diz, “os cruzeiros se tornaram os párias do mundo”. E teme uma possível má vontade dos funcionários portuários que se arriscam na pandemia para recebê-los. Uma bandeira amarela tremula no navio, o que significa que está livre do vírus. Mas a regra numa pandemia é suspeitar. Simon tenta não pensar nisso. Ele precisa manter Kerry calma.

Simon ainda lembra do vestido que ela usava na primeira vez que a viu no trabalho, mais de 20 anos atrás. Verde. Dentro dele, a mulher de longos cabelos encaracolados e um sorriso vivo, quase saliente. Ele não era o único candidato a namorado de Kerry. O rival propôs a ela uma viagem. Simon manteve o estilo. “O que você acha de me ajudar as pintar as janelas lá de casa? Em retribuição, eu posso oferecer torradas com feijão”. Nunca tinha sido bom em conquistas amorosas e não conseguiu pensar em nada melhor que esse clássico lanche da classe trabalhadora inglesa, à base de feijão enlatado. Ficou espantado por ter funcionado. Não foi o único.

Passaram os primeiros três anos de namoro viajando nos feriados e nas férias, sempre que o dinheiro permitia. Numa destas viagens, no interior da Inglaterra, Kerry dirigia o carro. De repente, não conseguiu mais tirar o pé do acelerador. O pé não se movia. Escaparam do acidente, mas não de um diagnóstico de esclerose múltipla. Ela tinha 30 anos, Simon 35. Ele não hesitou. Logo após a sentença médica, Simon pediu Kerry em casamento, o que significava mais do que o tradicional compromisso. Ele sabia que em breve se tornaria não apenas um marido, mas também um enfermeiro. Casaram-se num pequeno castelo na Escócia, porque queriam um casamento de romance para acessar no futuro. Kerry e Simon compreenderam que precisavam construir memórias.

A doença foi se apropriando do corpo dela, de dentro, aos poucos. Primeiro Kerry precisou de uma bengala, em seguida de uma cadeira de rodas em tempo parcial, e então a cadeira de rodas virou suas pernas. Ela já precisava de cuidados integrais. Simon, acostumado a fazer contas para os clientes da agência bancária que agora gerenciava, pegou o lápis para enfrentar o futuro que se desenhava. Não havia condições financeiras de bancar uma enfermeira para Kerry. O melhor a fazer seria abandonar seu emprego e carreira, vender a casa nas proximidades de Londres, uma das cidades mais cosmopolitas e caras do mundo, e comprar outra no norte da Inglaterra, uma região bem mais barata. O norte inglês nunca viveu a riqueza de Londres e do sul. Anos mais tarde se tornaria um dos redutos dos partidários do Brexit.

Simon, porém, só pensava que o dinheiro da venda da casa e a diferença de custo de vida ajudariam a mantê-los com dignidade nos anos que viriam. Transformou-se então no enfermeiro da mulher que amava. Desde então, a vida deles se tornou muito parecida com uma quarentena. Uma sem data para acabar.

Sempre que podiam, eles ainda tentavam alcançar ao menos outras paisagens da Inglaterra. Numa destas viagens de avião, a aeromoça disse a Kerry, já a bordo: “Agora você só precisa sair da cadeira de rodas e andar até a sua poltrona”. Kerry tentou, mas não conseguia andar. “Vamos lá, será que você não pode andar nem um pouquinho?”. Ela se sentiu humilhada diante de todos os passageiros. Juraram então que não viajariam mais de avião. Foi assim que descobriram os navios. Num cruzeiro para Casablanca, Kerry se sentiu tão acolhida que afirmou: “No navio eu não me sinto incapacitada”. Simon sorriu. Para dentro. Guarda aquela alegria com ele até hoje.

E então a doença foi piorando e exigindo mais cuidados e também dinheiro. Viajar se tornou quase impossível. Eles então sonhavam. “Um dia vamos fazer um cruzeiro mundial”. Sabiam que não podiam. Mas Kerry planejava as roupas que compraria para a viagem, os países que veriam, as comidas diferentes e também os novos amigos que talvez pudessem fazer. Kerry é novidadeira. E o cruzeiro significava também um interlúdio social para quem vivia entre paredes. Kerry tinha pelo que esperar, e isso sempre fez da sua vida uma viva viva, mesmo que solapada dia após dia pela doença.

Quando um dos braços de Kerry perdeu o movimento e o outro passou a tremer, Simon compreendeu que o cruzeiro mundial talvez nunca acontecesse. Quando ele tivesse direito a pensão, o que lhe permitiria a ousadia de um investimento, ela provavelmente já não seria capaz de viajar. Enxergar e falar já se tornavam verbos penosos para ela, cada vez mais imóvel e cercada por remédios para todos os tipos de dores, as físicas e as mentais. Mas, e se?

Simon gastou semanas fazendo cálculos e depois convencendo o banco a lhe dar uma hipoteca. Fez tudo isso em segredo e se sentiu ao mesmo tempo “falso”, porque estava “fazendo algo pelas costas de Kerry”, e terrivelmente sozinho numa decisão tão grande, porque em todos estes anos compartilhou tudo com Kerry. Mas ele queria surpreendê-la. E, principalmente, temia lhe dar uma esperança que não conseguisse entregar. Por semanas, consertar o velho sistema de aquecimento da casa, sempre quebrando nos piores momentos, foi a desculpa que deu a ela para poder falar com o banco pelo telefone.

Um dia o banco exigiu uma vistoria na casa para aprovar a hipoteca. Ele explicou que não era possível, porque Kerry sempre estava lá. Mas o banco não tem rosto mesmo quando é uma pessoa que faz a exigência. Simon então contou seus planos loucos a Kerry. E ela chorou. Muito. Simon ficou transtornado, porque, como me explica, “não lido bem com pessoas chorando”. Então ele entendeu que Kerry chorava de alegria. Kerry, depois de anos, já não mais precisava esperar. Os dias finalmente viravam um acontecimento. Ela, que perdia movimento, agora se movia. A doença seguia tentando pará-la, mas ela daria a volta ao mundo.

Embarcaram em 3 de janeiro. Comemorariam os 15 anos de casamento num cruzeiro mundial. Nunca tinham ouvido nenhuma notícia sobre o coronavírus. O governo da China informara apenas alguns dias antes, à Organização Mundial da Saúde, sobre uma nova doença. Ainda não havia nenhuma vítima fatal.

Fogos de artifício explodiram em cores nos céus de Southampton para festejar a partida do navio batizado como utopia. Simon escreveu seu primeiro haikai: “Southampton, hello. Beggining an adventure. Hopping for calm seas” (Alô, Southampton. Começando uma aventura. Espero que os mares estejam calmos).

Naquele momento, nem Simon nem Kerry nem nenhum dos mais de 2 mil passageiros poderiam espreitar um futuro que não fosse colorido.

Em janeiro, não era o vírus que ameaçava Simon e Kerry, mas a esclerose múltipla, o terceiro elemento, a doença íntima que fez de sua história de amor um triângulo. Kerry sentiu dores na perna direita durante um show no navio e se recolheram à cabine antes do fim. Havia um hematoma na planta do pé de Kerry. Que foi crescendo na medida em que a viagem avançava. A cada ida ao centro médico, eram 80 libras (509 reais). E os antibióticos não faziam efeito. Dentro de sua prisão pessoal, o coronavírus avançando pelo mundo era uma nota de rodapé. Quando chegavam a Curaçao, no Caribe, o médico avisou que, caso o corpo não reagisse, seriam deixados num hospital de alguma cidade portuária da América Central. Kerry talvez tivesse que sofrer uma amputação.

Simon passou a viver uma vertigem. Sentia-se “dormente”. Era quase impossível se imaginar sozinho com Kerry no hospital de um país desconhecido, numa língua que não compreendia. O primeiro gesto de cada manhã não era o de checar o clima do dia, como faziam os outros passageiros, mas o pé de Kerry. E então, antes que fossem desembarcados, a mancha parou de crescer. E eles puderam seguir em busca de mundos.

Em fevereiro, as primeiras notícias sobre o Covid-19 começaram a pipocar no jornal do cruzeiro, mas ainda não haviam chegado na capa. No dia 11 daquele mês, aniversário de Kerry, em vez de aportar em Tonga, como estava programado, foram desviados para o Taiti. Não era o coronavírus, mas um surto de sarampo que dominava Tonga e Samoa, na Polinésia. Era um prenúncio, mas eles ainda não sabiam.

E então começou. China e Hong Kong foram riscadas do mapa do planeta de Kerry e Simon. O “elemento asiático”, segundo o capitão do navio, “seria evitado”. Naquele momento, a China já contava mais de mil mortos. E o navio foi desviado para a Austrália. Ali aconteceu o encontro mais emocionante para Kerry. Ela abraçou um coala. E Simon pensou que todos nós, humanos, tínhamos que ser mais parecidos com coalas. O haikai que postou para os amigos no Facebook foi: “Breathtakingly scenic views. Mount Wellington, thanks”/ (Paisagens de tirar o folêgo, obrigado Monte Wellington).

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Kerry e Simon, durante a parada na Austrália.ARQUIVO PESSOAL

 

Para ele, o grande momento da viagem ainda chegaria. Em 19 de março, os primos do Sri Lanka o esperavam, alguns tinham tirado folga do trabalho. O acontecimento planejado há meses era finalmente apresentar Kerry aos parentes num almoço de família, unindo as pontas entre os dois mundos. Mesmo tendo nascido e crescido no norte de Londres, voltar ao Sri Lanka para Simon era uma espécie de volta para uma casa-árvore, porque lá moravam suas raízes, enquanto todo tronco e folhas permaneciam na Inglaterra. E então começaram os boatos de que talvez não fosse possível aportar. Com os dias ficou claro que o Sri Lanka também não os queria.

Simon viu os contornos do país de suas memórias herdadas desaparecer no horizonte. Percebeu então que estariam mais uma vez encurralados entre paredes, mesmo que elas fossem flutuantes.

A partir daquele momento, o navio iniciou uma volta acelerada para a Inglaterra. Acelerada, mas não tanto. Permaneceram por cinco dias na costa de Durban, na África do Sul. Foram dias de agonia, porque precisavam de combustível e as autoridades sul-africanas demoraram cinco dias para dar uma relutante resposta, mesmo com a garantia de que não tinham o vírus a bordo nem desembarcariam. Naquele momento, os mortos já eram contados aos milhares no planeta, que somava quase 30 mil vítimas fatais. O mundo de Simon e Kerry encolheu. Entenderam que para eles não haveria mais horizonte. O futuro eram as paredes. De volta às paredes. Paredes que agora pertencem ao banco.

O que Simon pensa enquanto o navio se aproxima da grande ilha chamada Grã-Bretanha, hoje isolada como a maior parte do mundo? Ele me conta por e-mail, como todo o restante aqui relatado. Eles navegam há meses numa bolha flutuante e agora chegarão a um país muito diferente daquele que deixaram. Simon pediu a um primo que comprasse comida para eles, mas o primo recusou-se a deixar o isolamento. E isso já diz muito sobre o que os espera.

Simon não sabe se conseguirá combustível para o carro que deixou estacionado no porto, não sabe se conseguirá alimentação, não sabe se conseguirá os medicamentos de Kerry, não sabe se os profissionais do qual depende a vida dela terão tempo e saúde para ela. Simon demorou dias para dizer. Então disse. Ele teme o que o coronavírus pode fazer com Kerry se ele, um homem só, um homem quieto, não puder protegê-la.

Em algum momento deste domingo eles chegarão, um homem e uma mulher numa cadeira de rodas, cercados de malas no porto. Um homem e uma mulher que entendem de quarentena desembarcando num país em quarentena. Kerry e Simon, sem mundo de tantas diferentes maneiras. O mundo que não conheceram, e o mundo que já desconhecem. A Inglaterra que deixaram já não existe. Tampouco o planeta, que já conta mais de 100 mil mortos, é o mesmo. Simon teme tudo o que os espera. Mas o que mais teme é que agora Kerry já não tem mais pelo que esperar.

Ambos são só poeira entre os mais de 7 bilhões de humanos que lutam para dar sentido à vida em tempos de coronavírus. Uma história pequena. A história do amor de Kerry e de Simon e de como, durante uma pandemia no ano de 2020, deles roubaram dois mundos.