MIAMI, EUA, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Primeiro, ele ficou radiante quando ouviu a notícia. "Fiquei tipo 'uau'", diz o escritor nova-iorquino Robert Jones Jr. O motivo? Grupos conservadores americanos queriam que o seu livro de estreia, "Os Profetas", que foi lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras, fosse banido de uma biblioteca pública nos Estados Unidos. "Isso me pôs na mesma categoria que Toni Morrison e James Baldwin", "Isso ocorreu porque havia uma grande base de apoio de um movimento pelos direitos dos pais que estava crescendo, com muito financiamento. E esse movimento de direitos dos pais, que era contra as restrições da Covid, é exatamente o mesmo grupo que está banindo livros", afirma Blankenship.

Um dos mais conhecidos desses grupos é o Moms for Liberty, ou mães pela liberdade, que hoje tem como principal bandeira a contestação de livros em bibliotecas públicas e escolares. O grupo tem apoio de DeSantis e de Donald Trump, que já participaram de seus eventos.

O Moms for Liberty, não por acaso, nasceu na Flórida, combatendo justamente o uso obrigatório de máscaras nas escolas durante a pandemia. "A Flórida é, em muitos aspectos, um modelo para uma onda de censura e políticas antidemocráticas", diz Blankenship.

Em 2021, quando estavam a todo o vapor os protestos do Black Lives Matter, ou vidas negras importam, logo após a morte de Floyd, o Senado estadual da Flórida aprovou a primeira lei que deu início à guerra do governador do estado contra o que a direita chama de "woke". É a chamada HB 1, que recebeu a alcunha oficial de "combate à desordem pública".

"Essa é uma lei antiprotestos, que é direcionada diretamente aos manifestantes do Black Lives Matter", afirma Blankenship. O intuito era "silenciar os manifestantes e começar a criminalizar os protestos", ela acrescenta.

Daí em diante, começaram a surgir uma série de outras leis que foram dando mais lastro para a onda de censura de livros que estava se formando.

Entre os destaques, o Stop Woke Act, a HB 7 de 2022 . Seu texto versa sobre assuntos ligados a preconceito de raça, nacionalidade e gênero e proíbe, de forma pouco específica, o ensino de ideias ligadas a racismo estrutural, interseccionalidade ou de qualquer tipo de insinuação que as discriminações racial, de gênero e de nacionalidade ocorrem para além da esfera individual.

O segundo destaque é o que a esquerda apelidou de lei "Don't Say Gay", ou não diga gay, a HB 1557 de 2022. "O nome já diz. Não vamos discutir ou ensinar sobre nada que tenha a ver com orientação sexual ou identidade de gênero", afirma a advogada.

"Essas leis são amplas e vagas. A intenção é confundir e fazer com que você não entenda o que é proibido exatamente", diz Blankenship. "Se você não entende exatamente o que é proibido, e a consequência de violar a lei é perder seu registro profissional, sua carreira, podendo até ser ameaçado com processos criminais, o que uma pessoa normal faria? Ela vai se censurar."

À medida que essas leis foram aprovadas, o número de pedidos de censura explodiu no país. Em 2020, 223 obras foram contestadas nas bibliotecas dos Estados Unidos, segundo a ALA. No ano seguinte, o número saltou para 1.858 obras. Em 2022, foram 2.571 e, no ano passado, chegou a 4.240.

"Sempre existiu o que chamamos nos Estados Unidos de cláusula de 'opt-out' nas bibliotecas escolares", diz a advogada. Isso significa que pais de alunos podem assinar um formulário dizendo que não querem que seus filhos tenham acesso a determinado livro. "Mas essas pessoas querem tirar o acesso de todo mundo", ela acrescenta.

Em março deste ano, houve um acordo que decidiu que a HB 1557, a "Don't Say Gay", não poderia ter efeito sobre livros. Em julho, um juiz federal considerou inconstitucional partes do Stop Woke Act que restringiam o ensino e o treinamento de assuntos relacionados a raça, gênero, sexualidade e origem nacional no ambiente de trabalho. A decisão também bloqueou partes que limitavam como essas questões poderiam ser abordadas em universidades.

"Muitos escritores ganham boa parte de seu dinheiro fazendo aparições em escolas e bibliotecas", diz Mitchell Kaplan, cofundador da Feira do Livro de Miami e dono da rede de livrarias Books & Books. "Se seus livros são proibidos, as bibliotecas e escolas param de os convidar. Estou ouvindo de muitos escritores, exceto os mais famosos, que estão tendo dificuldades, e é assustador o impacto que isso tem em sua escrita. Eles estão começando a censurar o próprio trabalho, o que é terrível."

Ele diz que a situação é muito diferente do que acontecia nas décadas passadas. "Quando eu era um estudante no sistema de ensino público aqui, podia ler qualquer coisa. Nunca houve problema. E, se você olhar para o que eu lia naquela época, provavelmente todos esses livros hoje não seriam permitidos no currículo", afirma Kaplan.

Isso não quer dizer que a censura seja algo novo para o setor cultural dos Estados Unidos.

Há 65 anos, um livro infantil com dois coelhinhos fofinhos desenhados na capa causou um debate de proporções nacionais. O problema: um coelho preto se casava com uma coelha branca. O Conselho dos Cidadão Brancos de Montgomery, no Alabama, não gostou do matrimônio interracial na obra "O Casamento dos Coelhos". Junto a um senador do estado, disseram que aquilo se tratava de propaganda pró-integração e que o livro deveria ser retirado das prateleiras e queimado.

A autora de livros infantojuvenis Judy Blume é uma veterana nessa discussão. Seus livros, que tratam de assuntos como puberdade e iniciação sexual, vêm sendo contestados desde os anos 1970. Seu livro "Ei, Deus, Está Aí? Sou Eu, a Margaret", por exemplo, chegou a ser proibido na escola em que seus próprios filhos estudavam.

Em reportagem de 1981, o New York Times contou que o número de protestos em frente a bibliotecas, que pediam o fim da circulação de certos livros, havia triplicado em relação ao ano anterior. As obras de Blume estavam entre os alvos mais frequentes.

"[Censura] não é recente, mas há uma grande diferença", diz Kaplan. "Quando Judy estava tendo seus livros banidos, não era o governo que estava fazendo isso. Não havia leis específicas. Quando é o governo que faz isso, então, de uma perspectiva legal, é realmente censura."

Segundo Kaplan, políticos estão usando essas proibições como uma forma de fazer barulho, arrebanhar apoiadores conservadores e construir uma plataforma política -tática comum nas recentes guerras culturais ao redor do mundo.

"Infelizmente, livros estão sendo usados por nossos políticos para tentar criar uma fissura entre o eleitorado. Estamos começando a ver ataques sérios a livros e escritores, aos currículos escolares, coisas que me levam a acreditar que muitas dessas figuras políticas têm medo de um eleitorado informado", ele afirma.

Segundo ele, os políticos da ala mais conservadora estão usando essas proibições como uma forma de fazer barulho, arrebanhar apoiadores conservadores e construir uma plataforma política.

O caso dos livros nos Estados Unidos é um dos exemplos mais cristalinos das guerras culturais que vêm acontecendo em democracias ocidentais. De um lado, estão políticos que não raro usam crianças como escudo moral contra as chamadas pautas de costumes. Do outro, um inimigo invisível –um livro, uma peça ou um filme capazes de destruir lares. A partir de denúncias espetacularizadas contra ameaças irreais, criam medo e revolta em uma população calejada pelas sucessivas crises econômicas. O resultado costuma ser a criação de um público cativo, em constante estado de excitação, que se engaja sempre nas polêmicas nas redes, mas também nas urnas. O show não pode parar

A primeira vez que Lisette Fernandez teve contato com a recente onda de censura foi em 2022. Após o pedido de uma mãe de origem cubana, foi banido da uma escola primária "O Monte que Escalamos", de Amanda Gorman, que ganhou fama ao declamar seus versos durante a cerimônia de posse de Joe Biden, além de dois fotolivros infantis que retratam fotos alegres de criança em Cuba. A mãe que fez o pedido, em entrevista ao Miami Herald, deu a justificativa de que os estudantes deveriam "saber a verdade" sobre Cuba.

Junto a uma amiga, ela decidiu fundar o Moms for Libros, grupo que luta pela liberdade literária nas escolas. "Basicamente, o que tentamos fazer é educar as pessoas sobre o que está acontecendo. Eu acompanho as políticas públicas, o que está acontecendo e o que está por vir", diz Lisette. "Também tentamos fazer com que os pais se envolvam mais com o que está acontecendo no conselho escolar."

Ele explica como funciona o processo de proibição de livros em bibliotecas escolares. Um pai ou mãe pode fazer uma reclamação formal, preenchendo um formulário em que explica por que não querem determinado livro na biblioteca. Então, um comitê faz um processo de revisão. Esse grupo costuma envolver representantes pais, professores, bibliotecários e administradores escolares. Dali, sairá a decisão se a escola mantém, restringe ou remove o título. Depois de 2021, esse processo ganhou um lastro legislativo com as bills de DeSantis.

O nome Moms for Libros é um trocadilho à esquerda com Moms for Liberty. A reportagem tentou contato com o grupo conservador, mas não obteve resposta deles, que negam que estejam promovendo censura e discordam do termo "book ban".

"O que eles estão proibindo são os livros que estão na escola. Não estão proibindo livros para compra, e esse é todo o argumento deles, de que você pode ir na Amazon e comprar o livro", diz Lisette. Segundo ela, esse pensamento ignora famílias de baixa renda, que nem sempre têm dinheiro para comprar livros na internet ou mesmo um veículo para irem a uma biblioteca mais distante.

"Estão retirando os livros da biblioteca escolar, onde elas poderiam acessá-los muito mais facilmente", diz. "E depois dizem que não estão banindo [livros]. Eu argumentaria que estão, porque agora estão tirando a acessibilidade delas."

No horizonte, Lisette vê uma série de desafios -desvalorização dos professores, crenças religiosas se esgueirando cada vez mais em direção ao Estado, autocensura por parte de escritores e desrespeito a minorias. Mas seu medo maior reside em outro lugar.

"Minha preocupação está mais no sentido da representação", ela afirma. "Se uma criança não se vê representada nos livros, o que isso faz com a confiança dela, com sua saúde mental?"