MÔNICA BERGAMO (FOLHAPRESS) - Uma das figuras mais emblemáticas da América Latina e da política de seu país, a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, quebrou um silêncio de cinco anos sem conceder entrevistas e recebeu a Folha para uma conversa em Buenos Aires no Instituto Pátria, que fundou inspirada no instituto de Lula no Brasil.
 
É a primeira vez também que ela concede entrevista a uma publicação brasileira.

Aos 69 anos, Cristina, que já foi deputada, senadora, primeira-dama e presidente da Argentina por duas vezes, será julgada na terça (6) em um processo em que é acusada de liderar um esquema de desvio de verbas públicas.


A Procuradoria pede que ela seja condenada a 12 anos de prisão. Os promotores dizem que Cristina chefiava uma associação ilícita que destinava verbas para 51 obras na província de Santa Cruz, da qual o ex-presidente Néstor Kirchner, seu marido, morto em 2010, foi governador.

Cristina diz que é vítima de um "pelotão de fuzilamento" e que as acusações são uma "falsidade absoluta". Como Lula, ela seria vítima de "lawfare", quando juízes perseguem investigados por razões políticas.

Na conversa, a vice-presidente afirma que o "Partido Judical", espalhado por países da região, cumpre hoje a função que antes era exercida pelos militares, de controlar a "vontade popular" e obstruir governantes que promovem a inclusão social e a defesa do patrimônio nacional.

Ela admite que a Argentina, cuja pobreza atinge 30% da população e que enfrenta uma inflação anual de quase 90%, "não vai bem". Mas tira a culpa dos ombros do presidente Alberto Fernández.

Apesar disso, se recusa a falar sobre ele _os dois estão rompidos.

Cristina enfatiza também os desafios de ser uma mulher, e ainda "com cintura", em cargos de poder. Segundo ela, Bolsonaro, se fosse mulher, já estaria "preso" pelo que diz.

A vice-presidente, que sofreu um atentado em setembro, fala sobre o medo de morrer ou de ser presa ""e diz estar segura de que o crime contra ela teve um mandante.
*
Folha - Nesta terça (6) a Justiça vai dar o veredicto sobre o processo em que a senhora é acusada de associação ilícita com um empresário que se beneficiou de obras públicas em Santa Cruz, no sul da Argentina, quando Néstor Kirchner e a senhora presidiram o país. A senhora diz que o veredito condenatório já está escrito. Há provas de seu envolvimento?


Cristina Kirchner - A sentença foi escrita em 2 de dezembro de 2019, na primeira vez em que testemunhei neste julgamento. Por razões muito simples. Primeiro: todas as minhas garantias constitucionais foram violadas. Segundo: tudo o que foi dito é mentira. Terceiro: o juiz que investigou este caso [em primeira instância, e decidiu enviá-lo a julgamento] é o mesmo [Julián Ercolini] que há sete ou oito anos, diante das mesmas denúncias feitas pela oposição, disse que não era competente [para investigar] e enviou o processo para [a Justiça do] sul do país.

A Justiça de Santa Cruz investigou e houve o sobreseimiento [quando um processo é finalizado por falta de causa]. Aquele processo envolveu o mesmo empresário e exatamente as mesmas 51 obras que agora voltaram a ser investigadas.

Quando todas as garantias são violadas, quando o juiz falava uma coisa e hoje fala outra com base em uma denúncia feita pelo governo [de seu principal opositor, o ex-presidente Mauricio] Macri, obviamente haverá uma condenação.

Foram três anos de audiências em que todas as provas testemunhais, documentais e periciais mostraram que é uma falsidade absoluta querer me envolver.

Além disso, constrói-se a imagem de ladrão, imputando-me crimes patrimoniais quando, na verdade, quando terminei meu mandato, eu tinha os mesmos bens pelos quais já fui investigada três vezes.

Em uma delas, inclusive, por esse juiz que nos acusa hoje [no processo das 51 obras], Julián Ercolini. Ambos [ela e Néstor Kirchner] fomos absolvidos.

Folha - Mas seu patrimônio aumentou?

Cristina Kirchner - Quando chegamos na Presidência [em 2003, no primeiro mandato de Néstor Kirchner], não éramos pobres. Tínhamos mais de 23 propriedades e uma aplicação financeira equivalente a US$ 3 milhões.

O jornal "La Nación" fez na época uma reportagem dizendo que éramos um casal que tinha já um bom patrimônio [antes de chegar à Presidência].


Alguns bens nós vendemos, compramos outros. Mas, quando saí da Presidência, voltei para a mesma casa em que morava antes. Os bens que tenho hoje são os mesmos de 2015.

É tudo tão claro que tiveram que abrir um processo com falsas denúncias sobre obras que já haviam sido julgadas porque não podiam mais me processar por enriquecimento ilícito.

Isso tudo foi feito pelo mesmo juiz [Ercolini]. Porque os processos [que a envolveram] caíram sempre com dois juízes: [Claudio] Bonadio [que morreu vítima de um câncer em 2020] e Ercolini.

Alguém fez o cálculo sobre as possibilidades de eles [juízes] serem sorteados [mais de uma vez para diferentes processos]. É uma em dois milhões.

Folha - A senhora diz que o sistema de sorteios foi manipulado?

Cristina Kirchner - Sim, absolutamente.

Folha - Mas se fala muito sobre sua proximidade com o empresário Lazaro Baez, que teria se beneficiado das 51 obras. Ele seria sócio da senhora e de Néstor.

Cristina Kirchner - Não, em absoluto. Você é sócio quando tem um contrato de sociedade. Ele era amigo de Néstor, como outros amigos empresários que Néstor tinha. Mas não, não.

Folha - A senhora sempre se refere a um "Partido da Justiça". Por que deveríamos acreditar que os juízes argentinos não são honestos?

Cristina Kirchner - Por tudo o que estou te contando. Denunciamos que esse juiz [Ercolini] se declarou incompetente [para julgar a causa contra Cristina, há oito anos] e depois se declarou competente. Tudo cai em "saco roto" [em saco rasgado, ou em ouvidos surdos].

Ricardo Lorenzetti, que era presidente do Tribunal [a Corte Suprema de Justiça, equivalente ao STF brasileiro], na época, tirou foto com Sergio Moro de um lado e com Bonadio, o juiz que perseguia a mim e à minha família, do outro.


Aqui o lawfare [perseguição de adversários por meios judiciais] foi enfrentado desde a cúspide do poder.
Foi um fenômeno de toda a região. E eu tenho uma percepção sobre isso.

Folha - E qual é ela?

Cristina Kirchner - O fenômeno do "Partido Judicial" aconteceu com Lula, com [o ex- presidente do Equador, Rafael] Correa, e acontece comigo.

Correa hoje é considerado um fugitivo asilado na Bélgica. E veja o que era o Equador quando ele governava e o que é hoje, um país devastado pelo narcotráfico, com uma desigualdade muito mais profunda.

Com Lula, a mesma coisa. A diferença é que as mesmas pessoas que o meteram preso depois foram buscá-lo e reverteram o que tinham feito. E por que? Porque chegou Bolsonaro, um personagem que fez muito mal país e a muitos atores da vida brasileira.

Portanto, aqueles que insultaram Lula e permitiram que Dilma [Rousseff] sofresse o impeachment finalmente deram toda "la vueltita" [fizeram um giro] e terminaram admitindo que o juiz Moro tinha sido absolutamente parcial.

Folha - E por que surgiria o que a senhora chama de "Partido Judicial" na América Latina?

Cristina Kirchner - O "Partido Judicial" substituiu o "Partido Militar" na região.

Depois da queda do Muro de Berlim [em 1989], começa na América Latina o período de governos neoliberais, com o aprofundamento da desigualdade, da miséria e da exclusão. E isso [posteriormente] gera uma onda de governos populares, nacionais e democráticos.

E obviamente começam a surgir novos instrumentos para controlar os governos que foram além do que o establishment lhes permitia na inclusão social e na defesa do patrimônio nacional.

A doutrina de Segurança Nacional e as ditaduras militares já não eram bem vistas para controlar a vontade popular e o surgimento de movimentos populares.

Surge então o "Partido Judicial" ""que persegue lideranças populares e protege governos como o de Macri.

O "partido" surge para disciplinar os líderes políticos que defendem mudanças. É um instrumento para que eles pensem duas vezes [antes de implementar suas políticas].

Nos nossos governos, recuperamos a YPF [Cristina expropriou 51% da petrolífera argentina, antes da espanhola Repsol], que administra as reservas de Vaca Muerta [as segundas maiores de gás xisto do mundo e a quarta de petróleo não convencional].

Há também uma tentativa de obstruir essas políticas, estigmatizando governos populares, dizendo que são ladrões.

Eu vi nessas últimas eleições no Brasil jovens dizendo: "Não vamos votar no Lula porque ele foi preso, não vamos votar em presidiário, em ladrão."

Essa é a construção do senso comum por parte não apenas do Judiciário, mas também da mídia. Porque os juízes não podem fazer o que fazem se não tiverem um braço midiático.


Presta atenção em uma coisa: no dia 6 de dezembro, vão ditar a sentença contra mim. No dia 7, vai sair nos jornais: "Cristina condenada". Sabe o que é o 7 de dezembro? É um dia muito emblemático na República Argentina [em que passaria a valer a Lei de Meios]. A lei que estabelecia que os empresários da mídia que tinham muitos canais de televisão, canais abertos, cabo e jornais, deveriam desinvestir para não ter uma posição dominante ou monopolista.

[A data da condenação] Será uma espécie de presente a [Héctor] Magnetto [CEO do Grupo Clarín, a maior empresa de mídia do país].

Folha - A senhora diz que o "Partido Judicial" substituiu os militares. No Brasil, no entanto, ganharam força no governo Bolsonaro.

Cristina Kirchner - A diferença é que o "Partido Militar" da Argentina sofreu uma profunda derrota durante a [guerra das Ilhas] Malvinas e por causa dos 30.000 desaparecidos [durante a ditadura].

Os processos [históricos] não foram iguais em todos os lugares. No Brasil, os militares não desindustrializaram o país. Pelo contrário. E a repressão no Brasil não teve comparação com a argentina.

E parece-me também que não houve no Brasil até hoje uma política de resgate da memória, verdade e justiça como houve na Argentina.

Aqui, o presidente [Raul] Alfonsín [que governou o país entre 1983 e 1989] fez o julgamento das Juntas [militares que governaram o país], e membros delas foram punidos severamente.

A partir de 2003, com a chegada do presidente Kirchner [ao poder], isso foi de novo impulsionado [e mais de 200 militares, não apenas da cúpula, foram punidos].

Folha - E isso faria a diferença nos dias de hoje?

Cristina Kirchner - Sim, claro. Mas perceba que o único golpe tradicional que aconteceu no continente, com a participação das Forças Armadas e de Segurança, foi justamente contra Evo Morales [na Bolívia]. E por uma razão muito simples: Evo fez uma profunda e importante reforma constitucional que tirou o caráter hereditário, quase com um lastro monárquico, dos juízes do país.

Ele democratizou a Justiça. O Tribunal Superior e o Conselho da Magistratura são formados por magistrados eleitos pelo voto popular. Portanto, não é por acaso que precisamente a Bolívia seja o único país onde houve um golpe tendo como lastro do que era a doutrina da segurança nacional, e derrubam Evo Morales.

Folha - Na Venezuela há forte participação militar, e o governo é definido como ditadura.

Cristina Kirchner - A definição de ditadura para a Venezuela me parece que está sendo revertida agora. Para o Departamento de Estado [dos EUA], Nicolás Maduro deixou de ser um ditador para se tornar o presidente da Venezuela [com a guerra da Ucrânia, os EUA flexibilizaram as relações com o governo venezuelano para poder adquirir petróleo do país].

Folha - Mas qual é a opinião da senhora?

Cristina Kirchner - Os que surgem da vontade popular nunca podem ser ditadores. Além disso, existe uma aliança muito forte na Venezuela entre as Forças Armadas e o partido político que Chávez representava. Chávez era um soldado, um homem profundamente militar. Era uma aliança muito forte lá. Agora, defini-la como ditadura, não me parece [ser o caso].

Folha - Vocês estão propondo aumentar o número de juízes da Suprema Corte na Argentina?

Cristina Kirchner - Sim.

Folha - Bolsonaro queria fazer isso no Brasil e foi interpretado...

Cristina Kirchner - Mas eu não tenho nada a ver com o Bolsonaro.

Folha - Foi interpretado como um golpe ele desistiu.

Cristina Kirchner - É preciso entender como as coisas se desenvolvem em cada lugar.

Quem reduziu o número de integrantes da Suprema Corte fui eu. Quando chegamos à Presidência, ela tinha nove magistrados. Fiz isso como um gesto, para mostrar que não queria controlar o Tribunal ao colocar nele mais gente.

Hoje o Tribunal tem cinco membros. Na verdade, quatro [uma das vagas está atualmente vazia]. Dois deles aceitaram ser nomeados por decreto assinado por Macri, sem passar pelo Senado. Houve tanto escândalo que passaram [pelo parlamento] seis meses depois.

Posso confiar que alguém vai respeitar a Constituição quando foi nomeado contra a Constituição? Não me parece muito sério.

E o Tribunal é muito pequeno. Hoje é necessário um tribunal ampliado.

Folha - Como Lula, a senhora diz que os empresários ganharam muito dinheiro durante seu governo. Se estava tudo tão bem, por que eles se viraram contra vocês? Ou na verdade houve problemas econômicos aos quais eles se opuseram?

Cristina Kirchner - O economista [polonês Michal] Kalecki respondeu muito bem: é uma questão cultural. Há um sentimento no patrão, no capitalista, de que se o sindicato for muito forte em uma economia robusta há o empoderamento dos trabalhadores.

Então, mesmo quando os favorece em termos econômicos, acende um alarme. Há algo sobre a necessidade de o trabalhador estar muito abaixo, e eu [empresário] acima.

Então mesmo empresários que ganharam muito em nosso governo e perderam no de Macri, votam em Macri.

Folha - Setores da classe média também se opuseram a esses governos ditos populares.

Cristina Kirchner - O peronismo foi o grande produtor da classe média na Argentina.

Setores da classe trabalhadora baixa se tornam classe média por seu esforço, obviamente. Mas o trabalhador se levanta sempre na mesma hora. Porém, em alguns governos, o esforço dá resultado, e em outros, não. É preciso ter um modelo de desenvolvimento econômico.

Esse movimento gera uma classe média que muitas vezes parte do aspiracional para adotar comportamentos do que gostaria de ser em relação a quem tem mais dinheiro.
É sociológico, não é criticável. É o que é.

Folha - A senhora conversou com Lula depois da vitória dele no Brasil?

Cristina Kirchner - Seria impróprio repetir uma conversa privada. Mas tivemos um diálogo muito bom sobre a visão dele do que hoje precisa ser feito no Brasil.
Eu o vi muito sereno, firme,seguro e claro.

Folha - As pessoas que a criticam dizem que "Cristina não é Lula", no sentido de que o presidente eleito do Brasil seria agregador, enquanto a senhora polariza seu país.

Cristina Kirchner - Se eu olhar para a eleição brasileira, acho que o Lula se "cristinizou". Hoje eu vejo como o Brasil está, e há uma polarização.

E cuidado. Não se esqueça de que eu sou mulher.

Somos infinitamente mais atacadas quando exercemos cargos de poder. E se vamos contra o que desejam os setores poderosos de uma sociedade, a estigmatização é total.

Já estampei até capas de revistas em caricaturas que falavam do orgasmo de Cristina com o poder.

E se a mulher além de tudo tem cara feminina porque penteia o cabelo, se pinta ou gosta de se arrumar [as coisas pioram].

Um amigo meu que não tem nada a ver com política , muito respeitado internacionalmente, mostrou minha imagem para outro amigo que nem sabia quem eu era. E disse "essa é a presidenta [da Argentina]". E o amigo respondeu: "Mas ela tem cintura!".


E isso ficou na minha cabeça. Me pareceu uma grande definição.

Folha - Eu ia falar sobre a questão...

Cristina Kirchner - [Interrompendo] Eu não quero fugir da pergunta sobre minha comparação com Lula. Olha, mais pragmática do que eu, acho que nem Lula nem ninguém é. Depois de ser perseguida durante os quatro anos do governo Macri, depois que minha filha adoeceu e foi internada em Cuba, montamos a Frente de Todos [aliança pela qual Alberto Fernandez se elegeu presidente da Argentina e Cristina, vice]. Eu poderia ter sido candidata. Mas apoiei outra pessoa, e vencemos.

Folha - E por que a senhora não foi candidata?

Cristina Kirchner - Qual era o quadro? Donald Trump seria reeleito presidente dos EUA. A economia norte-americana estava voando. O FMI tinha acabado de emprestar US$ 45 bilhões de forma inédita à Argentina para que Maurício Macri ganhasse as eleições.

Lula estava preso. E eu estava sendo questionada dentro de meu próprio partido político, do peronismo.

Eu tive que tomar uma decisão que unisse todas as forças políticas [de oposição a Macri], para podermos vencer.

Se tivesse vencido Macri, alguém imagina o que teria acontecido com a Argentina? Teria vencido aquele que endividou o país com o setor privado em US$ 100 bilhões, além dos US$ 45 bi do FMI. Uma política de exclusão teria sido validada, e isso seria irreparável.

Repito: não conheço nenhum líder no mundo que, podendo ser candidato e vencer, prefere colocar outro em seu lugar. Portanto, dizer que Cristina não é pragmática... sou mulher, esse é o problema. Se eu gritar, "histérica, ela está gritando, louca, louca".
Se é homem, ele é forte.
Se o Bolsonaro, em vez de homem, fosse mulher, já estava preso, já estava preso.

Folha - Já que a senhora falou de Alberto...

Cristina Kirchner - Não quero falar sobre o presidente, menos ainda em uma reportagem de um jornal estrangeiro.

Folha - Mas a senhora pode dizer se voltará a se candidatar à Presidência?

Cristina Kirchner - E você quer uma manchete para a Folha amanhã?

Folha - Eu quero, sim

Cristina Kirchner - Havia uma frase muito emblemática do General Perón em que ele dizia: "Tudo na sua medida e harmoniosamente".

Folha - A senhora acha que o país, com o governo de Alberto, está indo bem?

Cristina Kirchner - Não, o país não está bem. Como pode estar tudo bem depois da dívida que contraímos [no governo Macri]?

Folha - Mas qual é a sua responsabilidade?

Cristina Kirchner - Não, minha querida, as coisas não podem ser analisadas dessa forma. Quando saí do governo, em 2015, nossa dívida em dólares não chegava a 10%. Recebemos de volta um país endividado.

Com esse nível de endividamento, com essas exigências do FMI, a situação não é imputável ao atual governo.

Apesar das divergências que tive com meu próprio governo, e que foram públicas, ignorar isso é querer tapar o sol com as mãos.

Folha - A senhora sofreu um atentado em setembro, quando um jovem apontou uma arma para a sua cabeça, mas o disparo falhou. Teve medo de morrer?

Cristina Kirchner - Eu nem percebi. Não vi nem ouvi nada [Cristina se abaixou para pegar um livro que tinha caído no chão quando Fernando André Sabag Montiel, o autor do atentado, apontou a arma para ela]. Os psicólogos dizem que foi muito melhor, porque o impacto da cena nunca se apaga.


Depois que tudo foi analisado, se vê claramente que os que estão presos foram apenas os autores materiais. Existem ideólogos e autores intelectuais do atentado.

Eles [jovens que planejaram o atentado] foram fotografados com esses líderes [de oposição a Cristina]. Eles os seguiam [nas redes sociais]. Foram às mesmas manifestações [da oposição] e receberam financiamento de 17 milhões de pesos de um fideicomisso do [empresário Nicolás] Caputo, amigo de alma de Macri.

Dizem ter recebido por algum trabalho de carpintaria. E quando vão [verificar], não há carpintaria, nem os trabalhos.

Folha - Mas não existem provas de que há um mandante.

Cristina Kirchner - Não, não, me desculpe. Há provas. São 17 milhões de pesos que foram para esses grupos violentos que querem minha morte. Que queriam incendiar a casa do governo, que foram à minha casa com molotovs. Sim, eles foram liberados. Quem os deixou livres? Os juízes nomeados por Mauricio Macri antes de deixar o governo. Então não é que sejam minhas ideias. Há provas.

E aqui há um problema com o Judiciário [que não investigaria corretamente o atentado].

Folha - A senhora tem medo de ser presa ou afastada da política pela Justiça?

Cristina Kirchner - Eu temo a Deus, nada mais.

Folha - A senhora já foi deputada, senadora, presidente da República, vice.Por que ainda pensa em seguir na política?

Cristina Kirchner - Ai, meu Deus, se eu pudesse responder isso [para e pensa]. Não sei, é algo inato, é algo para pensar, para sentir, não sei.

É como perguntar a um médico por que ele continua operando. Ou para você: por que ainda é jornalista? Picasso pintou quadros até morrer. Política não é só ocupar um cargo. É poder introduzir ideias. Passá-las adiante.

Ser um líder é poder olhar um pouco mais longe e dizer "a história vai por aí, a gente tem que fazer isso. É ali".

Posso não ser mais presidenta, legisladora. Mas vou sempre opinar, dizer o que acho que precisa ser feito para construir um país melhor para o nosso povo.
Eu nunca vou desistir disso.

Folha - Dizem que o poder é sempre solitário, mas por muito tempo a senhora o exerceu ao lado de seu marido, com quem ficou casada por mais de três décadas antes de ficar viúva. Como é agora? Se sente só?

Cristina Kirchner - Não, não. Eu sinto falta dele, obviamente, e muita. Era meu melhor amigo, com quem eu podia conversar, discutir, brigar.

Nossas discussões, quem presenciou sabe, são lendárias.


Mas, não, não me sinto só. Assim como existem pessoas que não te querem e te insultam e te ofendem, também há muitas pessoas que gostam, apoiam e oram por você. Bem, isso é sempre bom.

Cristina Fernández Kirchner, 69

Nasceu em La Plata (Argentina) em 1953. Política e advogada, foi deputada federal, senadora, primeira-dama da Argentina e sucedeu o marido, Néstor Kirchner, na Presidência da República em 2007. Ficou viúva em 2010, e no ano seguinte concorreu à reeleição, obtendo 54,11% dos votos.

Em 2019, foi eleita vice-presidente na chapa de Alberto Fernández para um mandato de quatro anos.

"Somos infinitamente mais atacadas. Já estampei até capas de revistas em caricaturas que falavam do orgasmo de Cristina com o poder.