Há 25 anos, Lorena usava uma faca afiada para mutilar o próprio marido
Uma mulher de 22 anos dirige a toda velocidade em plena madrugada, nos Estados Unidos. Quando tenta fazer uma curva, suas mãos escorregam pelo volante ensanguentado. Nesse momento, Lorena Bobbitt (Equador, 1970) percebe que está segurando o pênis do seu marido na mão direita. Mas ele não está no assento do passageiro. Baixa o vidro, joga-o fora e continua sua fuga para lugar nenhum. Essa terrível cena se baseia em fatos reais ocorridos há 25 anos: a castração mais midiática da história. Uma tragédia grega, um thriller de terror e, para a imprensa norte-americana, uma comédia de humor negro.
Na noite de São João de 1993, quatro anos e quatro dias depois do seu casamento, John Wayne Bobbitt (Nova York, 1967) chegou em casa bêbado e supostamente estuprousua esposa, Lorena. Segundo ela, não foi a primeira vez. Mas seria a última, porque a mulher se levantou e foi à cozinha para beber água, então viu uma faca de trinchar perus, e as lembranças da agressão, do dia em que ele a obrigou a abortar e de anos de desentendimentos e ameaças se amontoaram em sua mente. Lorena afinal tinha mais sede de vingança do que de água, e aquela faca se transformou em uma oportunidade de 20 centímetros para mutilar o heteropatriarcado. Assim ela voltou para a cama, tirou o lençol de cima de John, agarrou o pênis dele pela ponta e o fatiou.
Enquanto Lorena se escondia no salão de beleza onde trabalhava como manicure, John protagonizava uma versão perversa desses filmes em que um médico informa ao atleta que ele talvez nunca mais possa entrar em campo. “Pode me reconstruir, doutor?”, perguntou um descontraído Bobbitt com o baixo ventre ainda ensanguentado. “John”, respondeu o cirurgião Jim Sehn, “não temos o pênis”.
Resignado, o ex-marine castrado consolou o médico: “Faça o que puder, rapaz”. E o saudou com a mão espalmada. Mas, numa épica reviravolta, a polícia, após horas de exaustiva busca noturna, encontrou o membro num descampado junto ao 7-Eleven da localidade de Manassas (Virgínia), onde o casal Bobbitt (sobre)vivia e que, até aquele 23 de junho, era famosa apenas por ser o cenário da primeira batalha da Guerra da Secessão norte-americana.
O doutor Sehn temia pelo pior: que o pênis estivesse coberto de cascalho, terra ou barro, que tivesse sido atropelado por um carro, ou mordido por algum animal. “Mas estava intacto”, recorda o cirurgião urológico, “e muito bem talhado, em um corte muito limpo. Chegou numa dessas bolsas de plástico herméticas, guardada por sua vez numa sacola de papel de restaurante”.
Dez horas de cirurgia mais tarde, Jim Sehn se tornou, com a assistência de David Berman, o verdadeiro herói desta história, ao reconstruir o pênis com sucesso. O vilão e a vítima eram, sem dúvida, John e Lorena Bobbitt. Mas ninguém parecia estar de acordo sobre quem era quem.
“Ele sempre quer ter orgasmo e não espera que eu tenha orgasmo”, argumentava Lorena Bobbitt na delegacia, com os tropeços gramaticais de quem não se defende em sua língua materna. “É egoísta”, acrescentava. Ela encarnava o homem do saco da virilidade: tornou realidade ancestrais terrores masculinos subconscientes. O caso midiático acabou inspirando outros crimes do gênero fora dos Estados Unidos, inclusive no Brasil.
Durante a primeira metade da década de noventa, os Estados Unidos viam sua cultura pop, sua moral e sua identidade política confluírem até se diluírem, sem que fosse possível diferenciá-las: os julgamentos midiáticos, transmitidos em tempo real pela televisão, transformaram o noticiário policial no ano zero dos reality shows. O homicídio cometido por O. J. Simpson contra sua esposa, as acusações de assédio sexual de Anita Hill contra Clarence Thomas, candidato a um cargo de juiz na Suprema Corte, a agressão da patinadora Tonya Harding à rival Nancy Kerrigan e a rede de prostituição de luxo comandada por Heidi Fleiss, mais conhecida como Madame Hollywood, deixavam a nação obcecada e geravam um profundo debate social.
Durante o julgamento do caso Bobbitt versus Bobbitt, acompanhado por 60% da população dos EUA, o diálogo a respeito do estupro marital chegou aos editoriais do The New York Times, aos programas de stand-up comedy e à fila do supermercado. Foi a primeira vez em que o histórico e referencial NYT publicou a palavra “pênis” em sua primeira página; antes, usava o eufemismo “órgão sexual masculino”.
Para as entidades de ajuda às mulheres maltratadas, Lorena se tornou um símbolo da sua luta, de uma forma tão distorcida quanto O. J. Simpson havia se transformado no ícone que a comunidade negra precisava. Entretanto, o advogado do marido dela alegou que Lorena o agrediu porque ele tinha pedido o divórcio. Mel Feit, diretor de uma das mais poderosas entidades envolvidas na luta pelos direitos dos homens (National Center for Men), entrou no debate: “Na guerra dos sexos, isto foi como roubar a mascote da equipe rival. O ataque é culpa das feministas, que convencem outras mulheres de que os homens são opressores por natureza”.
Poderia haver algo melhor que um julgamento midiático à custa de um crime tão bizarro? Sim: dois julgamentos paralelos. Um contra ele, por abusos, e outro contra ela, por castração sem chance de defesa. Em novembro de 1993, um júri composto por nove mulheres e três homens absolveu John Bobbitt da acusação de lesão corporal e estupro, apesar de ele ter alterado o seu depoimento em quatro ocasiões ao longo do julgamento (que não tinham mantido relações; que ela queria, mas ele estava muito cansado; que começaram, mas ele adormeceu no meio do ato; e, finalmente, que consumaram uma relação sexual consensual).
A primeira votação terminou em 6 a 6 e, depois de duas horas de deliberação, o veredito se inclinou por 10 a 2 em favor de “não culpado”. Conforme noticiou o jornal local The Spokesman-Review, a mãe de Bobbitt, Marylyn Biro, suspirou e olhou para o céu ao ouvir a decisão; John pulou da cadeira e ergueu o punho em sinal de vitória, enquanto vários membros do júri sorriam, assentindo com a cabeça; e os amigos da família se olhavam entre si com lágrimas nos olhos.
E ainda restava o verdadeiro clímax dramático, protagonizado pelos mesmos personagens: o promotor do condado de Prince William, que acabava de processar John (sem sucesso) agora pedia 20 anos para Lorena pela castração.
John Wayne Bobbitt tinha na época 26 anos e a mandíbula de um Kennedy, a gentileza de um cavalheiro (ou assim era percebido, pois nunca falava mal de sua mulher) e um passado no Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA. Lorena Bobbitt era uma imigrante equatoriana que havia decepado seu pênis. E ambos eram vítimas de um sistema de classes que gera obsessão nos EUA desde que Christopher Newport colocou um pé na Virgínia em 1607: a cirurgia que provocou a maior cobertura midiática nos anos noventa foi realizada sem a outra cobertura favorita da América, a médica. John Bobbitt não tinha seguro e precisou conseguir o equivalente a 800.000 reais no programa de rádio de Howard Stern dando cachorro-quente de presente.
Na escadaria do tribunal se amontoavam centenas de jornalistas do mundo todo, uma senhora vendendo chocolate em forma de pênis e barraquinhas de camisetas com o slogan: “O amor dói”. Dentro do edifício, o advogado de Lorena alegava alienação mental transitória, fruto do trauma provocado pelo estupro. Também afirmou que, dois dias antes do ataque, ela havia pedido uma ordem de restrição. Sete horas de deliberação bastaram para que ela fosse inocentada. Esse thriller doméstico, com seus símbolos de submissão (o utensílio de cozinha que só a mulher utiliza para cozinhar para o marido) transformados em armas, acabou com um efeito de fade-out na imagem, sem conferir a ninguém o papel de vilão.
Enquanto isso, Lorena, que tingia o cabelo de loiro, voltava ao anonimato e ao seu trabalho nos salões de beleza. John contratou o agente de La Toya Jackson (a irmã menos famosa de Michael) com a intenção de rentabilizar seu pênis, uma estrela em si mesma, num filme pornô chamado John Waine Bobbit: Uncut (um jogo de palavras entre “sem censura” e “sem cortes”).
Tratava-se de um filme biográfico em que Bobbitt recriava seus anos no Corpo de Fuzileiros Navais, seu casamento com Lorena, o incidente de 23 de junho de 1993 e sua vida posterior como máquina sexual. A produção não revela o pênis prodigioso até o final do primeiro ato, consciente de que o mistério é a chave do sucesso e de que a primeira ereção é a história de superação que viemos ver. A partir daí, John mantém relações sexuais com movimentos desajeitados, nula presença cênica e cara de quem não quer estar lá. O sucesso comercial (foi o vídeo pornô mais vendido até o momento) preparou terreno para uma banda de rock liderada por Bobbit (The Severed Parts, “as partes seccionadas”) e uma sequência em 1996, Frankenpenis, que não teve a mesma repercussão da primeira parte: uma vez visto o truque de magia, o público se dispersou e abandonou o edifício.
John Bobbit trabalhou como garçom, motorista de limusine, entregador de pizza, lutador de luta livre, recepcionista de boate e condutor de guindaste. Em 1994, foi preso por bater numa stripper, Kristina Elliot, em Las Vegas, durante sua turnê Love Hurts Tour. Casou-se de novo e adotou o sobrenome da esposa, Joana Ferrell, mas o casal se divorciou em 2004 depois que a mulher o denunciou por maus-tratos.
Poderia haver algo melhor que um julgamento midiático à custa de um crime tão bizarro? Sim: dois julgamentos paralelos. Um contra ele, por abusos, e outro contra ela, por castração sem chance de defesa.
Lorena, por sua vez, recuperou a identidade com seu sobrenome de solteira (Gallo) e viveu longe dos holofotes (protagonizou uma briga em 1997, quando deu um soco na mãe enquanto elas viam TV). Em 2007, fundou a Lorena’s Red Wagon, uma organização de ajuda a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. Em abril de 2009, esteve no programa de Oprah Winfrey para contar que nunca mais queria ver seu ex-marido de novo. Mas mentiu: um mês depois, ambos compareceram juntos a outro programa de televisão, The Insider.
No The Insider, John e Lorena fizeram uma espécie de terapia de ex-casal sem um objetivo muito claro, além do econômico. Ela jogou na cara dele: “Você me fez passar por coisas horríveis e dolorosas, que me deixaram louca. Nenhuma mulher deveria sofrer o que eu sofri.” John respondeu: “Na verdade, nunca entendi por que você é tão sensível. Você leva as coisas muito a sério.” Sobre a noite do incidente, Lorena explicou: “Isso é o que acontece quando um homem faz uma mulher ir longe demais. Me vi na rua com uma faca numa mão e um pênis na outra... Então veja, são coisas que acontecem.” Na última guinada do roteiro, porém, John Bobbitt acabou pedindo desculpa diante das câmeras: “Lamento minha forma de ser naquela época. Era um imbecil e fracassei na hora de te amar como você merecia.” O que mais dói para John, 25 anos mais tarde, é que ela não lhe tenha pedido perdão. Mesmo assim, ele lhe envia flores e cartões todos os anos no Dia dos Namorados.
Será que esta acabará sendo uma história de amor? Não parece. John, que diz ter ido para cama com mais de 70 mulheres desde a operação, não tem mais lugar na vida de Lorena. Ela é casada há 13 anos e tem uma filha de 12. Seu marido, segundo ela mesma conta, dorme todas as noites a seu lado, de barriga para cima e muito tranquilo.