A voz de Bob Marley se calou há exatos 40 anos, naquele que, hoje, é o Hospital da Universidade de Miami, nos Estados Unidos. O cantor e compositor jamaicano lutava contra um câncer desde meados de 1977, mas a doença não o impediu de participar de um dos momentos mais emblemáticos da história da música: a Independência do Zimbábue. Marley se tornou, rapidamente, um “grito onipresente” – nas palavras do ex-primeiro ministro jamaicano, Edward Seaga – contra o racismo, nomeadamente contra o a política sul-africana do “apartheid”. Seu álbum “Survival”, lançado em outubro de 1979, com as bandeiras das nações africanas estampando sua capa, se tornou uma espécie de cartilha musical pela libertação dos povos negros, desafiando o “establishment” da própria indústria fonográfica com uma mensagem de apoio à sua luta (armada, inclusive) frente ao neocolonialismo.
 

A guerra civil assolava a Rodésia, desde sua Declaração Unilateral de Independência (UDI), em 1965, e os mais de 15 anos de luta política, que incluíram uma sessão na assembleia do país que votou de forma unânime pela volta do status colonial, em 1979, desaguaram em uma situação insustentável. Em fevereiro de 1980, foram realizadas as primeiras eleições na nação que acabara de renascer como Zimbábue e os representantes da Frente Patriótica e da União do Povo Africano, que lutaram pela independência, venceram com quase 90% dos votos. Era preciso comemorar a emancipação e dois sonhadores, Job Kadengu e Gordon Muchanyuka, tiveram a ideia de convidar Bob Marley para um concerto, no dia que celebraria a independência.

 

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Divulgação 

O último concerto de Bob Marley aconteceu no dia 23 de setembro daquele mesmo ano, em Pittsburgh, nos Estados Unidos

 

“Kadengu e Muchanyuka viajaram até a Jamaica, para convidar Bob Marley. Seu empresário à época, Chris Blackwell, foi contra, mas o músico vinha acompanhando o processo de independência do Zimbábue e decidiu que iria à festa. Ele contratou um sistema de som – de 21 toneladas e 35.000 watts de potência – por conta própria, fretou um jato – um Boeing 707, o segundo maior avião comercial da época – e, na tarde de 16 de abril, desembarcou em Harare”, contou o professor da Universidade do Zimbábue e um dos articuladores do convite, Fred Zindi, à revista “Forbes”. Ele lembra que, durante a luta armada, as forças de libertação adotaram as canções de Marley como hinos: “Os guerrilheiros da Frente Patriótica levavam fitas K7 com suas músicas, nos combates”.

O responsável pela montagem do palco e por arranjar energia elétrica suficiente para a verdadeira usina de som que Marley levara teve apenas seis horas, para deixar tudo pronto. Como a celebração teria caráter oficialíssimo, com direito à presença do Príncipe Charles (a Rodésia era colônia britânica, até então), jornalistas do mundo todo esgotaram os quartos dos hotéis de Harare e, quando chegou, o jamaicano teve que se contentar com as acomodações do decadente Skyline, na “região metropolitana” da capital. Antes da apresentação, viajou quase 150 quilômetros para experimentar a cannabis local, em Mutoko, e quando chegou no Estádio Rufaro, em Mbare, a multidão já havia tomado cada centímetro.

'Viva o Zimbábue!'


Exatamente à meia-noite do dia 17 para o dia 18 de abril de 1980, a bandeira colonial caiu definitivamente e o Príncipe Charles saudou o maravilhoso pavilhão dourado, verde e preto, com a águia-pescadora africana ao centro, do Zimbábue. As pessoas, ao ouvirem os primeiros acordes de Marley, invadiram o estádio e uma grande confusão teve início – com direito a bombas de gás lacrimogênio e muito corre-corre. “Bob não percebeu o que estava acontecendo e foi para frente do palco, gritando ‘Viva o Zimbábue!’. Com medo, nós corremos para os bastidores”, lembrou Rita Marley, que estava no coro naquele dia, no documentário “Marley”.

 Marley se tornou, rapidamente, um “grito onipresente” – nas palavras do ex-primeiro ministro jamaicano, Edward Seaga – contra o racismo, nomeadamente contra o a política sul-africana do “apartheid


Guerrilheiros que haviam abandonado a luta armada, famílias que, depois de anos, se reencontraram e presos políticos que foram libertados se abraçaram – ninguém poderia imaginar que Robert Mugabe, ex-revolucionário eleito presidente, se perpetuaria no poder e terminaria acusado de corrupção e crimes contra a humanidade. Como forma de atender todos os fãs, Bob Marley ainda retornou ao Estádio Rufaro, menos de 24 horas depois, e tocou para os zimbabuenses que não conseguiram ver a apresentação da noite anterior. “Nunca assisti a um show de música como aquele. Não acreditávamos que éramos, finalmente, livres e nunca me senti como naquele dia”, disse o ex-ativista e, hoje, empresário Enos Nyarenda (que, no dia da independência tinha apenas 21 anos de idade e acabara de retornar do exílio). “Ainda estamos falando sobre aquele dia”.

O último concerto de Bob Marley aconteceu no dia 23 de setembro daquele mesmo ano, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. O melanoma cancerígeno se espalhou pelos pulmões e cérebro, o quadro de saúde do artista se agravou, nos meses subsequentes, e ele faleceu em 11 de maio de 1981, aos 36 anos. Suas últimas palavras ao filho, Ziggy Marley, foram um contraponto entre a condição financeira alcançada, com o sucesso na carreira, e a deterioração do seu estado de saúde: “O dinheiro não pode comprar a vida”.