'Topa tudo por dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos' não chega a ser uma biografia


Maurício Stycer sempre achou Silvio Santos uma figura “inescapável”. Como outros proprietários de grandes redes de televisão, está há muito tempo no negócio mas, diferente de todos, é o único cuja exposição contínua é uma realidade. Prestes a completar 88 anos, nunca arredou o pé de frente das câmaras. Ameaçou várias vezes, em episódios que se tornaram folclore, uma aposentadoria que nunca chegou. E foi, algumas vezes, figura um tanto embaraçosa no cenário político nacional. Só isso já era suficiente para Stycer se debruçar sobre um livro dedicado ao apresentador e proprietário do SBT. Topa tudo por dinheiro — As muitas faces do empresário Silvio Santos não chega a ser uma biografia. É muito melhor que isso.
Jornalista especializado na cobertura de televisão há mais de uma década, Stycer propõe um perfil biográfico, um ensaio de desconstrução de um sujeito que sempre tratou de erguer um muro de mitologias ao seu redor, uma reportagem muito bem-apurada sobre um personagem ainda capaz de parar o Brasil todo domingo. “Silvio está sempre muito presente, continua muito ativo, está sempre falando muitas coisas e fazendo muitas coisas. Toda hora você tá trombando no Silvio. É um cara que me fascina muito”, conta. “E quanto mais leio sobre ele, mais vejo coisas curiosas, às vezes imprecisas, incompletas, contraditórias. Achei que tinha uma história pra ser contada.”
A partir de uma mentira sustentada até a década de 1980, Stycer dá início ao desmonte de muitas inverdades sobre o apresentador. Silvio Santos sempre subtraiu cinco anos de sua idade durante entrevistas e, até meados dos anos 1980, acreditava-se que ele havia nascido em 1935, e não em 1930, com está registrado na certidão. Imprecisões quanto à atividade de camelô (ele vendia canetas), à mudança do empresário para São Paulo, aos primeiros anos na televisão, à compra do próprio canal e à candidatura a deputado e a presidente da República passam no crivo de Stycer para ganhar outras versões. Entram aí o contrato de gaveta que possibilitou a posse do SBT, assim como o episódio dramático no qual Silvio escondeu a existência da primeira mulher, Cidinha, porque acreditava que ela afetaria a popularidade dele.
Stycer cita algumas publicações, como as biografias de Arlindo Silva — A vida espetacular de Silvio Santos e A fantástica história de Silvio Santos — e de Rubens Francisco Lucchetti — a HQ Silvio Santos, vida, luta e glória – das quais partiu, mas cujo conteúdo ajudou a perpetuar as histórias atravessadas que alimentaram o mito. “Fica claro, quando eles voltam a escrever sobre o Silvio, anos depois dos escritos originais, que sabiam a história do casamento”, diz. No livro, Stycer conta que o apresentador teria, inclusive, autorizado Lucchetti a inventar uma parte da história da HQ. “É como se ele estivesse estimulando uma mitologia, ‘fala o que você quiser’. É uma figura complexa, mesmo”, acredita o autor de Topa tudo por dinheiro.

Mauricio Stycer, escritor e autor de 'Topa tudo por dinheiro'. Foto: Renato Parada/Divulgação
Mauricio Stycer, escritor e autor de 'Topa tudo por dinheiro'. Foto: Renato Parada/Divulgação


» Entrevista / Maurício Stycer
Houve uma manipulação consciente para a construção de um mito?
Não sei se consciente, mas tinha uma preocupação com essa construção, sim. Depois soma-se a isso (às mentiras sobre a idade) aquele episódio que é muito forte na minha visão que é da primeira mulher. Morreu uma pessoa que era tão íntima e ele já era famoso, e que não era conhecida pelos fãs. E aí, 10 anos depois da morte, ele reconhece que foi um erro imperdoável que cometeu. Esses dois pequenos episódios mostraram que tem realmente um esforço de construção de imagem. E fica claro, para mim, depois de pesquisar, que quem escreveu sobre ele, sabia disso e não revelou. E tem uma conivência, nesses primórdios do Silvio figura pública, com isso.
O livro não é biografia. Qual era sua intenção?
Minha intenção foi realmente esclarecer algumas questões. Eu realmente não tinha ambição de fazer uma biografia nova. Não me interessa, no caso do Silvio, saber detalhes da vida privada dele que ainda não foram contados. Acho até que tem gente interessada, mas a mim não interessava tentar revelar episódios obscuros da vida privada. O que realmente me fascinava eram as questões que acho mal contadas e que são importantes. Eu achava interessante entender o lugar do Silvio dentro desse campo de emissores de canais de tevê: como ele chegou a esse lugar e o que é original e o que não é nesse percurso. A questão da política é algo que sempre me fascinou, até porque vivi, já era jornalista, foi um período importante, uma coisa muito intensa, muito forte. E aí, quando você vai ler o que já foi publicado sobre isso, é sempre tratado como folclore, uma coisa engraçada, maluca.
Sobre a questão política, que você chama de irresponsabilidade, o que ela diz sobre as eleições de hoje? Ela se diluiu diante do que se seguiu?
Não sei se se dilui, mas é sintomático. O Silvio talvez seja uma dica disso, essa facilidade com que se entra para o processo político, a falta de raízes dele, a decisão meio de supetão, o interesse, a busca dele por um partido qualquer que fosse para participar — tudo isso são coisas que estão vivas no fundo, e é o nosso tempo, continua assim. E achava importante registrar que foi uma irresponsabilidade dele.
Quais são as principais polêmicas que ajudam a desconstruir o mito?
Essa sem dúvida é uma. O desprezo dele pelo jornalismo — e ele deixa isso bem claro — é uma coisa incompatível com um empresário do ramo da comunicação, e é único. Não há nenhum outro que não entende ou não valoriza ou ache importante o jornalismo dentro de uma empresa de comunicação.
Qual o lugar dele nesse cenário da tevê brasileira?
Todos os donos de televisão ou eram empresários de comunicação ou eram pessoas da política ou com interesses políticos. Silvio não era nem uma coisa, nem outra. Era um comerciante que foi para a televisão para vender produtos. Essa originalidade do lugar que ele ocupa me interessou. Ao mesmo tempo, me dei conta que ele tem várias coisas em comum também com esses donos de televisão. Ele repete padrões e achei importante sublinhar isso. Essa questão da bajulação aos donos do poder, ao usar a própria televisão para isso, pelo fato de ele ser ao mesmo tempo dono e apresentador, fica muito escancarado, mais do que os outros. Não estou dizendo que os outros não fizeram. Mas como apresentador/dono, quando ele fala “o Geisel é coisa nossa!”, é patético, chocante.
A figura do Silvio Santos tem condições de se reinventar num cenário em que a tevê aberta tem perdido força?
Acho que não. E nem é do interesse dele. Ele vai fazer 88 anos. Ele não tem interesse, ou não quer, ou não pensa nisso, e está satisfeito. Tem uma enorme quantidade de pessoas que gostam dele como ele é. E até provoca muito ruído isso, porque ele se apresenta publicamente com uma cabeça que é a mesma de 30 anos atrás, com comentários machistas, por exemplo. Não é que ele tenha se tornado uma pessoa assim recentemente, ele está repetindo o que sempre falou, só que hoje a gente tem uma compreensão diferente dessas questões. Essas questões têm mais ressonância, os grupos estão mais preparados para reagir a comentários machistas, homofóbicos e racistas do que estavam há 30 anos; então, reagem, criticam e protestam mais do que protestavam no passado.