Treinador do Ceará, que ganhou fama pela personalidade excêntrica, conta ao EL PAÍS as polêmicas em que se envolveu na carreira e as dificuldades de sua profissão no Brasil


São Paulo

Depois de todos os jogadores, com um fone de ouvido simples e uma mala de rodinha, Luiz Carlos, o Lisca, treinador do Ceará, desembarcou em um hotel de quatro estrelas no Morumbi, bairro nobre da capital paulista, em uma sexta-feira à noite. Foram apenas quinze minutos gastos no jantar e o técnico se dirigiu até à área de lazer do hotel para responder algumas perguntas do EL PAÍS. “Me senti querido nos clubes que passei”, sorriu em resposta à primeira indagação, à beira da piscina, de onde conseguia ver a Ponte Estaiada ao fundo. Estava relaxado e tranquilo, enunciando as frases com o forte sotaque gaúcho de forma simpática, um contraste com a imagem mais popular de Lisca, que teve a carreira marcada por episódios polêmicos, ainda que muitos deles bem-humorados, que evidenciam o intenso envolvimento com o torcedor que lhe rendeu a alcunha que o acompanha –Lisca Doido.

Natural de Porto Alegre, o treinador começou a carreira nas equipes de seu Estado. Acumulou passagens por categorias de base do Internacional e equipes como Juventude, Brasil de Pelotas e Caxias. Em 2014, ganhou as manchetes pela primeira vez por uma confusão, com o atacante Neto Baiano, quando enfrentava o Sport pelo Náutico durante o campeonato pernambucano. Lisca venceu o primeiro clássico no estadual, ainda pela primeira fase, e viu o atacante ir para cima do banco de reservas após o apito final, alegando que o treinador havia feito uma provocação na comemoração pela vitória. Mas foi Neto quem riu por último: na final, o atacante ajudou o Sport a ser campeão em cima do Náutico e comemorou dançando na bandeira de escanteio, “frescando”, o verbo que no Nordeste significa brincar ou provocar.

Um ano depois, Lisca estava de volta ao Náutico, após passagem pelo Sampaio Correa. Na série B, enfrentou o Criciúma, então clube de Neto Baiano. Lisca, desta vez, venceu o atacante por 2 a 0. Não deu outra: o treinador foi imitar a dancinha de Neto na frente da torcida pernambucana, que gritava seu nome. “Eu guardei aquilo [a provocação do ano anterior]. Mas foi uma brincadeira. Realmente repercutiu no Brasil todo, foi meio estranho para um treinador”, confessa Lisca.

A ligação com o público ficou mais evidente no trabalho seguinte do treinador, no mesmo Ceará que comanda agora. Com o clube ameaçado de cair para a série C, Lisca assumiu em setembro de 2015, ganhou seis dos últimos nove jogos e livrou a equipe do rebaixamento. Foi na época que surgiu o canto, agora famoso: “Saiu do hospício / Tem que respeitar / Lisca Doido é Ceará”. “É uma relação recíproca. Me considero torcedor do Ceará desde aquela vez”, diz o treinador. Depois do jogo que confirmou a permanência (1 a 0 no Macaé, em Fortaleza), Lisca comemorou de forma entusiasmada com a torcida, colocando a fantasia do mascote no meio do campo e girando os punhos em volta da cabeça como quem admite que é louco. “Mas isso aí eu estou querendo mudar”, reclama o técnico. “Porque vocês dão ênfase sempre à brincadeira e falam pouco do trabalho”.

Maior polêmica

Aos 46 anos de idade, a equipe mais tradicional que Lisca dirigiu foi o Internacional, com uma missão quase impossível de livrá-lo do rebaixamento nas últimas rodadas do campeonato brasileiro de 2016. Durou três jogos: uma derrota, uma vitória e um empate, que não foram suficientes. “Sabia que seria complicado, mas assumi porque o Inter foi o clube que me formou”, conta ele. Logo no primeiro jogo, a equipe colorada foi derrotada pelo Corinthians com um pênalti polêmico em cima de Romero, apitado pelo árbitro Rodolfo Toski Marques. “Ali deu para ver que a questão política contra o Inter estava muito forte. Com essa derrota, nem vencendo os outros jogos nós escaparíamos. Acho que amadureci bastante e não ficou nada na minha conta”. No ano seguinte, veio o episódio que marcou de forma mais negativa a carreira de Lisca até aqui. O treinador assumiu o Paraná Clube no 15º lugar na segunda divisão nacional e o levou à quinta colocação. Em setembro de 2017, quando tudo parecia bem, Lisca foi demitido no dia do jogo contra o Atlético-MG pela Primeira Liga, acusado de agredir fisicamente o auxiliar Matheus Costa.

O treinador lamenta o episódio, alegando uma armação por parte de seus colegas. “Um menino, que nunca havia sido treinador [Matheus Costa, o auxiliar-técnico], se favoreceu com outras quatro ou cinco pessoas. Eles não tiveram a capacidade de assumir quando o time estava em 15º, mas, em 5º e pronto para subir, eles quiseram tomar conta do trabalho”. Subir de divisão seria a primeira conquista relevante na carreira de Lisca, mas foi Costa quem guiou o Paraná até o acesso. “Tive medo que o episódio pudesse atrapalhar minha carreira, até porque já tem o negócio de doido". O treinador afirma estar processando os envolvidos. "Será provado. A acusação é sem pé nem cabeça”.

Na sequência, Lisca assumiu o Guarani, no fim de 2017, com a missão de livrar a equipe do descenso à série C. Conseguiu. Ainda teve uma passagem de um mês pelo Criciúma antes de voltar ao Ceará, agora na elite brasileira, para fazer o mesmo trabalho de recuperação. Apesar da situação difícil, ainda na zona de rebaixamento, foi com Lisca que os cearenses conquistaram suas primeiras três vitórias no Brasileirão. O técnico não titubeia em admitir que é o clube mais especial da sua carreira: “Me tiraram do hospício e ainda pediram para respeitar”.

“Tem que ter farinha no saco”

Marcado pelos seguintes trabalhos de recuperação, nos quais é chamado para salvar equipes do rebaixamento em diferentes divisões, Lisca não demonstra preocupação com o estigma. “Minha primeira oportunidade no profissional foi para não deixar o Brasil de Pelotas cair no campeonato gaúcho. E consegui. Não tenho empresário forte e não fui jogador famoso, então as oportunidades que surgem para mim são dentro da dificuldade”. E afirma que, na hora do desespero, o perfil do treinador contratado é fundamental para o êxito do projeto. “Não é hora de ver quem é bonitinho, de fazer avaliação. Chama quem tem experiência e sabe fazer o trabalho. Chama quem tem farinha no saco”.

Os trabalhos de Lisca, além de pautados pela recuperação, não costumam ser longevos. Entre as duas últimas passagens pelo Ceará (essa de 2018 e a de 2015/2016), foram 12 jogos no Joinville, três no internacional, oito no Paraná, oito no Guarani e quatro no Criciúma. É sabido, no entanto, que a situação não é exclusiva ao treinador do Ceará, e sim comum no futebol brasileiro; só neste ano, 18 treinadores foram demitidos nas primeiras 18 rodadas do Brasileirão. “A dificuldade do treinador no Brasil é cultural. Não se analisa trabalho, metodologia, característica do treinador. Na dificuldade, troca”, pontua o gaúcho, que também diz ter certeza de que o imediatismo afeta a qualidade do futebol praticado no país. Lisca afirma que, num cenário tão volátil, é precisa se adaptar. E tranquiliza os fãs que desejam uma longa carreira ao peculiar treinador: “Enquanto tiver estômago para digerir, vou. Quando não aguentar mais, paro. Por enquanto ainda estou digerindo”.