Mas, graças ao pioneirismo de clube do Triângulo Mineiro

Vinte mil torcedores se acotovelavam curiosos pelo duelo festivo em uma época que um órgão federal proibia competição de futebol entre mulheres

<i>(Foto: EM/D. A Press)</i>
As jogadoras do Araguari chegaram a BH de avião e foram recebidas como verdadeiras estrelas. Vestindo as camisas de América e Atlético, elas foram a principal atração da Festa dos Melhores, promovida pelo Diário da Tarde no Estádio Independência (Foto: EM/D. A Press)
 
 
Passava das 14h de domingo, 10 de maio de 1959, quando 22 jogadoras entraram no gramado do Independência com as camisas de América e Atlético. Nas arquibancadas do Horto, 20 mil torcedores se acotovelavam curiosos pelo duelo festivo em uma época que o Conselho Nacional de Desportos (CND), subordinado ao Ministério da Educação e Cultura, proibia competição de futebol entre as mulheres – bola nos pés, só em partidas de exibição, enfrentando o preconceito e os olhos desconfiados dos pais. A história do clássico, disputado por jogadoras de Araguari, no Triângulo Mineiro, que vestiram a camisa dos dois clubes, é a primeira parte da reportagem “Pioneiras F.C.”, sobre as raízes do futebol feminino em Minas Gerais.

Clássico feminino entre América e Atlético, no Independência, em 1959

Sessenta anos depois, América e Atlético voltam a se enfrentar em amistoso sábado, às 10h, no Mineirão. Hoje, por determinação da CBF, seguindo exigência da Fifa e Conmebol, clubes sem time feminino em competições nacionais estão proibidos de jogar a Libertadores. No fim da década de 1950, a situação era bem diferente. O pior: qualquer iniciativa, mesmo que independente, era prontamente interrompida pelo decreto-lei de abril de 1941 que afirmava que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”.
 
Os contratempos, entretanto, não intimidaram o diretor de futebol do Araguari Atlético Clube, Ney Montes, de criar dois times femininos, inicialmente para arrecadar fundos para um grupo escolar. Organizou uma peneira e escolheu 25 meninas. Jogaram pela primeira vez em dezembro de 1958 e a fama logo correu o país. Às 9h10 de quinta-feira, 7 de maio de 1959, desembarcaram no Aeroporto da Pampulha, em avião da Real, para jogar pela primeira vez na capital mineira, como atração principal da 6ª Festa dos Melhores, promovida pelo Diário da Tarde.

<i>(Foto: Arquivo EM)</i>Mirna, do América, e Marizete, do Atletico, no estádio Independência em 1959 (Foto: Arquivo EM)
 
 
Partiu do periódico dos Diários Associados, que teve a ideia de vesti-las com as camisas de América e Atlético. “Para se estabelecer nesta exibição a criação do espírito de rivalidade entre as equipes vimos por bem encamisá-las de modo diferente, seguindo para isto a maior marca de tradição do futebol mineiro: o clássico das multidões”, anunciava a publicação, de 8/5/1959.

 
<i>(Foto: Arquivo EM)</i>Mirna e Marielza fazem controle de bola em sessão de fotos para divulgação do jogo (Foto: Arquivo EM)


A presença das garotas, todas na média de 15 anos, gerou um alvoroço em Belo Horizonte. Jogadoras como a goleira Eleuza, as zagueiras Marizete, Mirna e Zalfa; as médios Ormezinda e Leni; e a ponta-esquerda Wesleina viveram dias de estrelas de cinema, com fotos nos jornais e entrevista no estúdio da TV Itacolomi. “A rivalidade entre Atlético e América era muito grande, tanto que as torcidas ficaram separadas durante o jogo. E isso aumentou muito o interesse em torno da partida”, lembra Zalfa Nader, zagueira-central, capitã do Atlético.
 
FESTA E GRACEJOS PUNIDOS
 
No início da tarde de domingo, 20 mil pessoas lotaram o Independência. “As beldades de Araguari, por si só, arrastaram ao Independência, na tarde de ontem, grande parte da multidão que lotou o Gigante do Horto, como autênticas vedetes do espetáculo em que se constituiu a tarde esportiva”, destacava o Diário da Tarde.

<i>(Foto: Renan Damasceno/EM/D. A Press)</i>Reportagem do Diário da Tarde, de maio de 1959, relata que 'três torcedores se dirigiram às jogadoras com gracejos, mas logo foram punidos por um policial' (Foto: Renan Damasceno/EM/D. A Press)
 
 
O clima era de festa, e muito respeito, mas um fato chamou a atenção: três torcedores se dirigiram às jogadoras com gracejos, mas logo foram punidos por um policial. “Dando vazão à sua pouca educação, três moleques dirigiram gracejos às moças (...) Um investigador, de serviço na pista, se limitou a colocá-los de costas para o gramado, encostados no paredão da ferradura”, dizia o texto.
 
O Atlético abriu o placar com Iraídes, aos 4 minutos. Aos 22min, Leny empatou para o Coelho. O gol da vitória do Galo foi de Wisleina, aos 18min. “Quando o Atlético ganhou o jogo, a torcida jogava chapéus para cima, paletós. Foi uma festa no gramado”, lembra Zalfa.


<i>(Foto: Arquivo EM)</i>Zalfa (E) foi a capitã do Atlético na partida contra o América, no Independencia, em 1959 (Foto: Arquivo EM)
 
SONHO QUE DUROU POUCO
 
A equipe feminina do Araguari Atlético Clube foi um sonho que durou pouco mais de um ano, quando foi sufocado de vez pela proibição de competição entre mulheres no Brasil. Em 1959, os dois times excursionaram por Uberlândia, Belo Horizonte, Varginha, Salvador e até receberam convite para jogar no México. As jogadoras ganharam as páginas dos principais jornais e revistas, como O Cruzeiro, que registrou as tardes de casa cheia do Estádio José Vasconcelos Montes, em Araguari, e em Uberlândia.

 
<i>(Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro - 1959)</i>
Os jogos de futebol feminino foram a grande atração no Triângulo Mineiro no fim da década de 1950 e lotavam os estádios. Na foto, uma partida em Uberlândia (Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro - 1959)
 
 

<i>(Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro - 1959)</i>Torcedores subiam em árvores e muros para assistir aos jogos das meninas (Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro - 1959)
 
 
A ideia partira de Ney Montes, que à bordo de seu Chevrolet Ramona, percorreu Araguari convidando as moças entre 14 a 20 anos para jogar futebol. “Meu pai era muito conhecido e respeitado na cidade. Os pais e mães das jogadoras só deixavam viajar se ele fosse junto”, conta Teresa Cristina Cunha, filha de Ney Montes, já falecido.

<i>(Foto: Eugenio Silva/O Cruzeiro )</i>
A goleira do Araguari, Eleuza Santos, passa batom dentro de campo (Foto: Eugenio Silva/O Cruzeiro )
 
 
 
<i>(Foto: Teresa Cristina/Divulgação)</i>
Marta e Zalfa Nader, ex-capitã do Atlético, em encontro no Rio no ano de 2014 (Foto: Teresa Cristina/Divulgação)
 
 
 
“A gente era muito humilde, menina do interior, e pudemos viajar de avião, ficar em hotel três estrelas, participar de recepções nas cidades. Todos nos respeitavam muito. É uma época que todas temos saudades”, Conta Darci de Deus Leandro, hoje com 75 anos, mãe de cinco e esposa de Homero, ex-goleiro do Araguari. “A gente foi jogar na Bahia e tinha muita vontade de jogar fora do Brasil, no México. Mas quando fomos fazer os documentos, a lei foi rigorosa e o time teve que acabar”, lembra a zagueira, que defendeu as cores do América no Independência.
 
Muitas jogadoras foram para handebol, vôlei, outras deixaram de vez o esporte. Em 2014, veio o reconhecimento, quando foram homenageadas no Rio, no Palácio do Catete –  o mesmo lugar onde foi assinado o decreto-lei que proibiu o futebol feminino em 1941. As jogadoras se encontraram com Marta, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo. “A gente lamenta que muitas já se foram antes de ser homenageadas, mas fazemos questão de lembrar de todas que fizeram parte desta história”, se emociona Darci. 

Araguari jogava sempre com casa cheia no anos 1950