Mas, graças ao pioneirismo de clube do Triângulo Mineiro
Vinte mil torcedores se acotovelavam curiosos pelo duelo festivo em uma época que um órgão federal proibia competição de futebol entre mulheres
As jogadoras do Araguari chegaram a BH de avião e foram recebidas como verdadeiras estrelas. Vestindo as camisas de América e Atlético, elas foram a principal atração da Festa dos Melhores, promovida pelo Diário da Tarde no Estádio Independência (Foto: EM/D. A Press)
Sessenta anos depois, América e Atlético voltam a se enfrentar em amistoso sábado, às 10h, no Mineirão. Hoje, por determinação da CBF, seguindo exigência da Fifa e Conmebol, clubes sem time feminino em competições nacionais estão proibidos de jogar a Libertadores. No fim da década de 1950, a situação era bem diferente. O pior: qualquer iniciativa, mesmo que independente, era prontamente interrompida pelo decreto-lei de abril de 1941 que afirmava que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”.
Os contratempos, entretanto, não intimidaram o diretor de futebol do Araguari Atlético Clube, Ney Montes, de criar dois times femininos, inicialmente para arrecadar fundos para um grupo escolar. Organizou uma peneira e escolheu 25 meninas. Jogaram pela primeira vez em dezembro de 1958 e a fama logo correu o país. Às 9h10 de quinta-feira, 7 de maio de 1959, desembarcaram no Aeroporto da Pampulha, em avião da Real, para jogar pela primeira vez na capital mineira, como atração principal da 6ª Festa dos Melhores, promovida pelo Diário da Tarde.
Mirna, do América, e Marizete, do Atletico, no estádio Independência em 1959 (Foto: Arquivo EM)
Partiu do periódico dos Diários Associados, que teve a ideia de vesti-las com as camisas de América e Atlético. “Para se estabelecer nesta exibição a criação do espírito de rivalidade entre as equipes vimos por bem encamisá-las de modo diferente, seguindo para isto a maior marca de tradição do futebol mineiro: o clássico das multidões”, anunciava a publicação, de 8/5/1959.
Mirna e Marielza fazem controle de bola em sessão de fotos para divulgação do jogo (Foto: Arquivo EM)
A presença das garotas, todas na média de 15 anos, gerou um alvoroço em Belo Horizonte. Jogadoras como a goleira Eleuza, as zagueiras Marizete, Mirna e Zalfa; as médios Ormezinda e Leni; e a ponta-esquerda Wesleina viveram dias de estrelas de cinema, com fotos nos jornais e entrevista no estúdio da TV Itacolomi. “A rivalidade entre Atlético e América era muito grande, tanto que as torcidas ficaram separadas durante o jogo. E isso aumentou muito o interesse em torno da partida”, lembra Zalfa Nader, zagueira-central, capitã do Atlético.
FESTA E GRACEJOS PUNIDOS
No início da tarde de domingo, 20 mil pessoas lotaram o Independência. “As beldades de Araguari, por si só, arrastaram ao Independência, na tarde de ontem, grande parte da multidão que lotou o Gigante do Horto, como autênticas vedetes do espetáculo em que se constituiu a tarde esportiva”, destacava o Diário da Tarde.
Reportagem do Diário da Tarde, de maio de 1959, relata que 'três torcedores se dirigiram às jogadoras com gracejos, mas logo foram punidos por um policial' (Foto: Renan Damasceno/EM/D. A Press)
O clima era de festa, e muito respeito, mas um fato chamou a atenção: três torcedores se dirigiram às jogadoras com gracejos, mas logo foram punidos por um policial. “Dando vazão à sua pouca educação, três moleques dirigiram gracejos às moças (...) Um investigador, de serviço na pista, se limitou a colocá-los de costas para o gramado, encostados no paredão da ferradura”, dizia o texto.
O Atlético abriu o placar com Iraídes, aos 4 minutos. Aos 22min, Leny empatou para o Coelho. O gol da vitória do Galo foi de Wisleina, aos 18min. “Quando o Atlético ganhou o jogo, a torcida jogava chapéus para cima, paletós. Foi uma festa no gramado”, lembra Zalfa.
Zalfa (E) foi a capitã do Atlético na partida contra o América, no Independencia, em 1959 (Foto: Arquivo EM)
SONHO QUE DUROU POUCO
A equipe feminina do Araguari Atlético Clube foi um sonho que durou pouco mais de um ano, quando foi sufocado de vez pela proibição de competição entre mulheres no Brasil. Em 1959, os dois times excursionaram por Uberlândia, Belo Horizonte, Varginha, Salvador e até receberam convite para jogar no México. As jogadoras ganharam as páginas dos principais jornais e revistas, como O Cruzeiro, que registrou as tardes de casa cheia do Estádio José Vasconcelos Montes, em Araguari, e em Uberlândia.
Os jogos de futebol feminino foram a grande atração no Triângulo Mineiro no fim da década de 1950 e lotavam os estádios. Na foto, uma partida em Uberlândia (Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro - 1959)
Torcedores subiam em árvores e muros para assistir aos jogos das meninas (Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro - 1959)
A ideia partira de Ney Montes, que à bordo de seu Chevrolet Ramona, percorreu Araguari convidando as moças entre 14 a 20 anos para jogar futebol. “Meu pai era muito conhecido e respeitado na cidade. Os pais e mães das jogadoras só deixavam viajar se ele fosse junto”, conta Teresa Cristina Cunha, filha de Ney Montes, já falecido.
A goleira do Araguari, Eleuza Santos, passa batom dentro de campo (Foto: Eugenio Silva/O Cruzeiro )
Marta e Zalfa Nader, ex-capitã do Atlético, em encontro no Rio no ano de 2014 (Foto: Teresa Cristina/Divulgação)
Muitas jogadoras foram para handebol, vôlei, outras deixaram de vez o esporte. Em 2014, veio o reconhecimento, quando foram homenageadas no Rio, no Palácio do Catete – o mesmo lugar onde foi assinado o decreto-lei que proibiu o futebol feminino em 1941. As jogadoras se encontraram com Marta, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo. “A gente lamenta que muitas já se foram antes de ser homenageadas, mas fazemos questão de lembrar de todas que fizeram parte desta história”, se emociona Darci.
No fim dos anos 1950, jogos do time feminino do Araguari Atlético Clube eram uma atração à parte na em todo Triângulo Mineiro. Imagem mostra partida na cidade de Uberlândia, com estádio lotado. Quem não conseguia entrar subia em árvores e nos muros para assistir à peleja das pioneiras do esporte em Minas