'Homem com o coração arrancado do peito', 37º espetáculo do artista, canaliza a falta de perspectiva do país
Sobre o personagem-título, o criador define seu arco dramático como uma “amnésia existencial”. “É um homem que entra em pane psíquica e começa a ‘escrever páginas em branco’, abdicando da estrutura formal da linguagem. Ele transcende o significado das palavras e faz um comentário ácido sobre a crise no país.”
O novo espetáculo faz uma crítica certeira às circunstâncias brasileiras, marca registrada de Marcelo. O solo trata de forma literal a “crise interminável”, a falta de perspectiva, a insegurança e o descaso com a população. “É uma reflexão sobre a reação social contra fascismo, homofobia, machismo, racismo e etnocídio, e também sobre um movimento social que tem crescido no Brasil, encabeçado pelas mulheres. O país está mais consciente em relação à cidadania. Os protestos mobilizam milhões de pessoas e revelam a necessidade de preservar as instituições democráticas”, afirma.
Mais que uma análise externa, ele conta que suas próprias reações à cena nacional deram o pontapé inicial para a criação dessa dramaturgia. “Acho tão absurda a situação do Brasil que, às vezes, fico sem fala, em estado de choque”, conta. A descrença com as lideranças políticas encabeça a lista de nossos problemas coletivos. “Não acredito nos políticos, em nenhum deles. São sempre mais atores do que os próprios atores e jogam com a opinião pública o tempo inteiro. É uma classe, em sua maioria, de criminosos e psicopatas que estragam o Brasil”, dispara Marcelo Gabriel.
Para ele, não só os políticos, mas a própria sociedade civil traz suas controvérsias. “O brasileiro não sabe interpretar o próprio país e se atém a conceitos arcaicos, retrógrados. Isso está mudando, a partir do momento em que vejo movimentos como o das mulheres contra Bolsonaro, que é fortíssimo”, opina o artista, referindo-se à rejeição do candidato do PSL à Presidência junto ao eleitorado feminino. Isso tomou forma, na última semana, com o grupo Mulheres Unidas Contra Bolsonaro, no Facebook, que reúne mais de 2 milhões de membros.
FUTURO A expectativa de mudança é apontada como a maior inspiração de Marcelo Gabriel, cujo objetivo é “discutir a crise, indo além do estado de morbidez”. A arte é sua ferramenta para o progresso. “Meu trabalho cumpre esse papel de mudança de paradigmas, muitas vezes à frente da própria sociedade que representa, traçando futuros possíveis, o que é terreno árduo”, avalia. Nos palcos, ele questiona as categorias tradicionais do ofício, as condições de produção e o consumo por parte do público.“Arte, na atualidade, é como uma publicidade corporativa. Devemos lutar contra os pressupostos de uma sociedade em que a produção criativa serve aos instrumentos de poder. Não é possível pensar a arte como produto. O palco é um espaço sagrado, não se pode apresentar uma encomenda ou uma brincadeira”, defende Marcelo Gabriel.
Desde o início da carreira, em 1987, ele apresenta o anseio de abranger múltiplas linguagens, baseado nos pressupostos do artista e ensaísta alemão Richard Wagner (1813-1883). “Sou um ator que instrumentalizou bem o corpo. Meu trabalho é um híbrido. Não há como definir e nem gosto de compartimentar a percepção sobre ele. Os curadores tentam me definir como bailarino, ator ou performer, mas esse tipo de compartimentação não existe para mim. O artista deve e tem direito de se expressar sem nenhum tipo de rótulo. A criatividade se apresenta de forma orgânica através do corpo, da voz, da música, das artes plásticas...”, explica.
Diferentemente de seus últimos espetáculos, em que privilegiava a fluidez criativa e não se prendia a textos de apoio, Homem com o coração arrancado do peito é totalmente roteirizado. O texto autoral rendeu um ano de ensaio e extenso trabalho de construção do personagem e de estados expressivos. “A dramaturgia foi criada a partir de atmosferas e estados vocais ambivalentes que se chocam, problematizando a noção de interpretação. Não tento contar uma história, mas sobreviver a ela”, define o autor e intérprete. “Acho insuportável interpretar uma personagem. O que faço como ator é reagir aos limites formais da obra, provocando um curto circuito expressivo.”
Temas recorrentes em suas últimas criações voltam à cena. No ano passado, com Cheerleaders no deserto, Marcelo Gabriel encarnou o presidente dos Estados Unidos Donald Trump para criticar o avanço do conservadorismo. “É uma onda que se espraiou por todo o mundo. Trump vende esse modelo ao Brasil, a toda a América e também à Europa.” Outra temática abarcada pela dramaturgia é a violência e as ameaças sofridas pelos povos indígenas, presente também em Encantações para os mortos (2016) e outras montagens.
O novo espetáculo, entretanto, difere-se por tratar de forma mais certeira das questões sociopolíticas. “A forma de lidar com a dramaturgia é mais clara, porque faço uso das palavras, e de forma bastante combativa, inspirado nos movimentos sociais”, define.
TUDO DELE Homem com o coração arrancado do peito é um trabalho integralmente assinado por Marcelo Gabriel, responsável até mesmo pela trilha sonora. “Faço uma pesquisa de texturas e desconstruo sons no estúdio. Crio uma paisagem sonora, que é amálgama da dramaturgia e a compõe junto ao texto”, conta.
Ele afirma que desenvolver espetáculos de forma individual não é uma opção, mas exigência de seu processo criativo. Em 1988, fundou a Companhia de Dança Burra, com apenas um integrante: ele mesmo. O projeto foi sua primeira incursão nas artes cênicas e nasceu como crítica ao descaso sofrido pela cultura. Com o solo, recebeu um prêmio do 20º Salão Nacional, promovido pelo Museu da Pampulha.
“Preciso desse momento solitário, dessa imersão. Não existe um método para criar. A criação vaza pelos poros, é uma necessidade metafísica e existencial do artista. Não é uma forma de exibicionismo baseada no ego. Não consigo dimensionar meu processo criativo ou explicar como eu crio, porque nem eu mesmo entendo. As coisas vão brotando, é uma reação primal.”
Para ele, o trabalho individual não implica, necessariamente, em maior liberdade para um artista do que atuar em uma companhia. Hoje, com quase 40 criações levadas a público, Marcelo nega ter se aprimorado em técnicas ou mesmo na abordagem de temas, mas busca uma evolução, em outra medida. “Existe um ato de resistência, humano e pessoal, contra esse estado de morbidez cultural e política, que, espero, se intensifique a cada espetáculo.”