“Todos, sem exceção, aprendem. A educação é geral, para todos, um processo de mudança social. Mas a aprendizagem é singular, de cada um. Eu aprendo de um jeito; você, de outro”. 

Aos 62 anos, Ângela Mathylde Soares fala com conhecimento de causa. Passou a infância sofrendo com a falta de paciência, em casa e na escola, de pessoas que não conseguiam passar uma informação e vê-la absorver de forma “rápida”. Chegou a ser ridicularizada.  Mas quem pensava – e até dizia – que aquela menina “não chegaria a lugar algum” devido às dificuldades impostas pela dislexia teve que dar o braço a torcer. 

Neurocientista, psicanalista e psicopedagoga, Ângela é hoje referência em aprendizagem e inclusão. Autora de dezenas de livros e com vários prêmios no currículo, organiza no Brasil um dos maiores congressos educacionais do mundo e está à frente da Aprendizagem e Cia, clínica belo-horizontina com foco em diagnóstico de transtorno de aprendizagem e pioneira em trabalho multi e interdisciplinar.

Nesta entrevista, Ângela fala sobre rótulos; do papel da família e do educador; da demora para se enfrentar verdadeiramente os transtornos de aprendizagem; e da contribuição da ciência na capacitação de professores para transformar esse cenário. “A inclusão veio para isso, para incluir não a patologia, mas vários aprendizes”.

Confira.

Você teve uma infância marcada por dificuldades no ensino e na aprendizagem. Como foi transformar uma história que poderia ter acabado em evasão escolar em um PhD em neurociência, mais de 40 livros publicados e quase 30 prêmios?

Minha infância foi marcada por muitos desafios, e o maior deles foi vencer o preconceito social de ser negra em um ambiente onde só brancos circulavam e a dificuldade ligada ao transtorno de aprendizagem. Então foram dois desafios muito grandes: primeiro, pela falta de entendimento da família e da escola de que havia um problema e não falta de vontade, preguiça e muito menos deficiência intelectual. Isso me abalou demais, porque tinha alguma coisa no ar, “ela tem problema, tem uma coisa”, e uma criança se sentir insegura em dois ambientes obrigatórios a lhe proporcionar segurança…

Foi realmente uma infância marcada por “ela não dá conta”, o que significa “ela não será nada na vida”, “está fora dos nossos padrões” e “é um aborto dos nossos sonhos”, o que é uma palavra muito forte. A gente precisa rever os padrões em que a escola transfere a responsabilidade para a família, que se omite, esperando que a escola resolva.

O que você acha que mudou na acolhida e na abordagem de crianças com algum tipo de dificuldade nesses anos todos? 

Infelizmente pouca coisa mudou na tratativa. Quanto à pesquisa, muitas pessoas têm investido nisso para tranquilizar professores e famílias, mas ainda continuamos passando pelo pior dos transtornos, o de ensinagem: o professor finge que ensina, o aluno, que aprende, e a família, que tudo está bem. Precisamos desestruturar este transtorno para trazer conhecimento e informação, porque conhecimento é libertador, amplia horizontes. É preciso saber que a “preguiça”, “burrice”, e etc, têm um nome, que é preciso ter informação sobre, porque é a partir disso que a situação começa a mudar.

É a mesma coisa que uma pessoa ter duas pernas, apenas uma funciona, mas a família e a escola querem que sejam as duas. Esse processo de fortalecimento da perna não receberá o mesmo destaque daquela que funciona perfeitamente, não se percebe evolução, recebendo apenas comparações que “não é como a outra perna”, e isso causa uma baixa autoestima tremenda. As escolas hoje em dia fabricam crianças com baixa autoestima.

Quais os maiores desafios para se ensinar no Brasil?

Um dos maiores desafios para aprender e ensinar esta questão da metacognição é o conhecimento. É preciso englobar os professores em uma dinâmica científica, eles precisam descobrir a ciência. Eles têm conhecimento, são formadores de conhecimento, mas enquanto cientistas da informação precisam estar em laboratório, e não existe nenhum mais amplo que a escola. Então o professor, na sala de aula, precisa ser um pesquisador, de sentimento, emoção, inteligência social, pensamento social, interação social e socioemocional. Ele precisa ser o facilitador e mediador. 

Mas e quem cuida do professor? É o embasamento científico, se ele está ruim emocionalmente, precisa buscar tratamento. Agora, quanto à questão da pedagogia, o ato de ensinar e aprender, ele precisa estar revestido de conhecimento.

E para se aprender?

O aprender é de todos. Todos aprendem, sem exceção, “mas aquele que tem o coeficiente intelectual baixo”, olha, a metodologia facilita o aprender. Mais uma vez batemos na tecla do conhecimento, na necessidade de interação e revestimento desta ciência. Então, todos, sem exceção, aprendem. A educação é geral, para todos, um processo de mudança social. Mas a aprendizagem é singular, de cada um. Eu aprendo de um jeito; você, de outro. A política pensa: “Como vamos fazer com 25 alunos dentro de sala?”. A inclusão veio para isso, para incluir não a patologia, mas vários aprendizes. 

Você está à frente de um plano educacional e científico, nacional e internacional, sobre uma nova forma de fazer educação assertiva. Qual é a proposta? 

O “Brain Connection” é um congresso que virou um movimento com objetivo de trazer ferramentas para formação de professores e outros profissionais envolvidos na educação. É um projeto com aprovação da União Europeia e o Erasmus+, que tem interesse de capacitar, empoderar e levar conhecimento a todos, para facilitar a vida de todos no processo.

Esse movimento trabalha com a educação assertiva, uma metodologia necessária para o aluno aprender. Então, se o aluno tem dislexia, com certeza ele não vai aprender a ler e escrever com método silábico, precisará de um método assertivo fônico, que trabalha com a consciência fonológica, porque ao reconhecer sons e letras, será mais fácil para ler e escrever. Assertividade é ter evidência e comprovação no método utilizado e na forma como aplica.

O educador brasileiro está pronto para isso?

Já são nove anos de luta, temos uma plataforma com vários eventos, gratuitos, para que o professor possa estudar, entender, capacitar-se, formar-se. Trabalhamos com a recompensa, ou seja, a sua valorização, e aí me perguntam “Ele está pronto para isso?” e eu rebato: “As políticas públicas dão esse acesso?”. As políticas públicas viciam as pessoas a fazerem de qualquer jeito, porque não têm o que fazer, deixam acontecer para depois apagar o incêndio. Isso faz com que o transtorno seja trabalhado tardiamente, e deveríamos agir para a prevenção.

Este ano é um ano eleitoral, e os prefeitos têm papel crucial na educação pois são responsáveis pela educação infantil e pelo ensino fundamental na rede pública, o que abrange um número imenso de alunos. Que propostas você gostaria que fossem discutidas pelos candidatos nessa área?

As políticas públicas precisam ser realizadas. Até os 6 anos, a criança é uma esponja. Se tiver estimulação, prevenção, ambiente sadio e uma família organizada, ou seja, programas que as incorporem, isso é de extrema importância, trabalhar os marcos dos desenvolvimentos na escola, trazendo a ciência como evidência e não os achismos. 

Muitos podem dizer que são muitos tópicos e que os cientistas só ficam no laboratório, pelo contrário! Professores são cientistas da educação, e seu laboratório é a escola. O que trazemos para dentro de sala são métodos, evidências facilitadoras, mas quem vai trabalhar é o professor, capacitado para isso, buscando o instrumento e devolvendo em metodologia, assertividade, cooperação, parceria e evidência. No entanto, o professor precisa entender que seu papel, além de social, é individual, coletivo e singular, porque infelizmente as famílias querem parceria com a escola, mas a instituição não sabe fazer isso com a família.

A escola no processo educacional acha que quando a criança entra na sala tudo o que ela aprendeu passa a não valer, então o professor passa a buscar tudo para substituir o vácuo que ficou. É preciso valorizar a educação do berço, a família, o primeiro ambiente alfabetizador. A escola é formadora de conhecimentos prévios, ou seja, o que vem da família, ela capacita cada vez mais o que foi internalizado em casa. Essa parceria já existe, mas a escola não pode usar esse papel para ser família. 

É preciso entender isso para evitar uma tragédia. Os papéis estão invertidos e, por isso, batemos na porta das políticas públicas.

Há mais algum aspecto que você gostaria de destacar? 

Tem um filme muito interessante na Netflix, se chama “Leo”, e é uma crítica muito bem focada e formalizada sobre o que estamos vivendo na educação mundial. É muito triste a realidade dos alunos, tanto na privada quanto pública, todos estão passando por esta situação. Espera-se que a pública erre mais, porque o nível de exigência das particulares é maior na formação e interação dos professores, na equipe e etc, mas isso não faz o professor ser melhor ou não, o que faz isso é ele estar inserido e contextualizado com a demanda. Não adianta ser professor no papel, com títulos, mas o que você faz com essas formações? Esse é o diferencial, você precisa transformar vidas. Quando você enxerga a realidade social, você não quer mais ser um mero contribuinte, quer estar na ação.

 

hojeemdia.com.br