SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A antiga disputa por uma fonte de água para a produção de cerveja da que hoje é a maior fábrica da Heineken no Brasil ganhou um elemento novo e inesperado nas últimas semanas: o governo federal.

Com o litígio já julgado, sem possibilidade de recurso legal, e a decisão perto de ser oficializada, entraram no caso a AGU (Advocacia-Geral da União) e o MME (Ministério das Minas e Energia).


O empresário baiano Maurício Britto Marcellino da Silva ganhou na Justiça o direito de explorar o subsolo onde está a água que sustenta a produção da Heineken em Alagoinhas (BA), cidade cem quilômetros ao norte de Salvador.


A decisão transitou em julgado, ou seja, tornou-se definitiva, em 2015, não cabendo mais recurso. Depois de muitas idas e vindas, a ANM (Agência Nacional de Mineração) confirmou a decisão no fim do ano passado e, na última semana, enviou um ofício ao ministério pedindo que todas as autorizações dadas para a cervejaria fossem cassadas.


Segundo o MME, o ofício da ANM chegou à Secretaria de Geologia e Mineração na última semana. "Dessa forma, ainda deverá seguir o fluxo de análise das áreas técnica e jurídica antes de ser dado o parecer final do MME."


Procurada, a Heineken se manifestou em nota. Afirmou que desconhece qualquer ofício, enviado pela ANM para o Ministério de Minas e Energia, requerendo a cassação do seu requerimento de lavra para exploração de água mineral e que tem todas as licenças para a fábrica operar e que "não há nenhuma possibilidade de fechar sua unidade".


O processo agora está na mesa de Alexandre Vidigal de Oliveira, secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do ministério.

Há cerca de dois meses, a AGU entrou no caso. Apresentou uma petição no processo da agência afirmando que não concorda com o acordo firmado com a ANM para que a decisão judicial fosse cumprida. Os advogados do empresário não entendem o repentino interesse da AGU pelo caso.


"A União é pessoa jurídica distinta da agência de mineração e não é parte do processo", afirma Luiz Henrique Oliveira do Carmo, advogado de Marcellino da Silva.


A disputa pela fonte tem mais de 20 anos, e a história é cheia de passagens controversas.


Segundo os advogados do empresário, Marcellino da Silva fez o requerimento para obter o direito de prioridade de exploração de fosfato em uma área de 2.000 hectares, na região de Alagoinhas, em 1993.


Pela lei brasileira, ganha o direito de exploração do subsolo, independentemente de qual seja o mineral explorado, quem primeiro apresenta o pedido no órgão competente. Na época, esse órgão era o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), que foi substituído pela ANM em 2017.

O pedido acabou interceptado por um interesse político, afirma o advogado.


"Em dezembro de 1996, meu cliente foi surpreendido por uma notificação informal do antigo Departamento Nacional de Produção Mineral para ter uma conversa. Ele compareceu e disseram o seguinte: 'Querem implantar uma fábrica de bebidas nessas terras, quem vem é a Schincariol, e você vai precisar ceder a área'", diz o advogado.


Em 2011, a Schincariol, que recebeu o direito de exploração da área, foi vendida ao grupo japonês Kirin Holdings Company. Em fevereiro de 2017, a cervejaria Heineken anunciou acordo para a compra da Brasil Kirin -e, com isso, assumiu a fábrica baiana.


"Maurício não concordou em ceder a área. Então, fizeram um parecer interno para tirar a concessão dele e cederam a área para a cervejaria", afirma o advogado. "Foi quando ele entrou com essa ação, que durou 24 anos; e saiu vitorioso em todas as instâncias."


Ocorre que, mesmo com a decisão judicial, a agência não oficializou o direito de uso para o empresário. No início de 2017, dois anos após ter ganho a causa na Justiça, os advogados entraram com um pedido de cumprimento de sentença.


"Decisão judicial não se discute, se cumpre", afirma o advogado. "O primeiro parecer determinou o cumprimento da decisão, que invalidou o parecer usado para cassar a licença na década de 1990 com a recomendação de que a superintendência da Bahia adotasse as devidas providências."


A fábrica da Heineken de Alagoinhas é a maior da empresa no Brasil e emprega atualmente 1.400 pessoas, entre funcionários diretos e indiretos. A empresa retira cerca de 16 bilhões de litros de água por ano do local.

Apesar da decisão judicial, nada aconteceu. Seguiu-se, então, uma nova rodada processual, que também avançou em favor do empresário.


"Em 2019, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), deu um prazo de 60 dias para que a agência cumprisse a decisão", diz o advogado. "Aguardamos os 60 dias, e a agência não se manifestou nos autos."


Optou-se, então, por punir financeiramente os integrantes da agência. O advogado conta que a Justiça estipulou uma multa de R$ 8 milhões para ser paga na pessoa física de cada diretor. "Aí resolveram marcar uma audiência de conciliação para o dia 19 de março porque queriam que a gente deixasse de executar a multa em cima deles."


Foi quando veio a pandemia, e a data da audiência foi remarcada para o início de junho, por videoconferência. Naquele encontro, que está gravado, ficou decidido que a multa não seria cobrada, mas a agência deveria dar o cumprimento imediato à decisão.


Em novembro saiu a primeira publicação no Diário Oficial da União, da parte da agência, anulando os direitos de outorga da Heineken, mas falta agora o Ministério de Minas e Energia se manifestar.


A Heineken afirma que acompanha e participa do processo envolvendo sua cervejaria desde o momento em que tomou conhecimento sobre o assunto, em 2018.


"Além disso, a companhia reforça que não há nenhuma possibilidade de fechar sua unidade produtiva e encerrar suas atividades na Cervejaria de Alagoinhas na Bahia, sob nenhuma hipótese, e reitera que a empresa possui todas as licenças para operar."

A Heineken também diz que não é parte do processo, por isso nunca perdeu nenhum prazo de manifestação.


"A empresa entrou com recursos administrativos para que a ANM revisse os últimos andamentos do caso, que aconteceram, no entendimento da companhia, sem a observância do princípio da coisa julgada administrativa, ou seja, do fato de que já existia decisão favorável ao sr. Mauricio Marcelino para a exploração de fosfato na maior parte da área requerida."