SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O aumento da desigualdade de renda provocado pela pandemia da Covid-19 comprometerá o crescimento global nos próximos anos e pode desencadear uma nova onda populista e anti-reformas em países que precisam modernizar suas economias, como o Brasil.
 
Mais endividados e com déficits maiores após os gastos extras na pandemia, muitos países terão dificuldade em explicar aos eleitores, em um cenário de mais desigualdade e empobrecimento, que a eventual perda de direitos no presente (como numa reforma para conter o gasto público) representaria crescimento maior à frente.

Segundo dois dos maiores especialistas em desigualdade da atualidade, Angus Deaton, prêmio Nobel de Economia, e Branko Milanovic, autor do best-seller "Global Inequality", a combinação de menos crescimento e reformas econômicas em xeque trará consequências políticas imprevisíveis -assim como o aumento da desigualdade nos últimos anos teria alimentado líderes e partidos populistas ou extremistas.

Deaton e Milanovic explicitaram esse cenário em seminário online promovido pelo EBRD (European Bank for Reconstruction and Development), que reúne 69 países e financia projetos para reformas estruturais.

Para a economista-chefe do EBRD, Beata Javorcik, professora em Oxford, assim como na crise financeira de 2008-2010, os pacotes bilionários implantados o redor do mundo na pandemia poderão, mais uma vez, concentrar recursos em poder de elites que controlam a política.

"Temo que governos corruptos emerjam mais fortes dessa crise", diz.

Em vários aspectos, a expectativa é que a recuperação econômica pós-pandemia seja em forma de "K", com os mais ricos mantendo-se mais protegidos e beneficiados pelos pacotes de ajuda; e os mais pobres e as minorias perdendo mais.

Nos EUA, por exemplo, enquanto milhares de pequenos negócios fecharam e 2020 terminou com 10,7 milhões de desempregados, o índice S&P 500 da Bolsa de Nova York subiu 16% no ano; o Nasdaq, das empresas de tecnologia, 44%.


Segundo Deaton, com dois terços da força de trabalho norte-americana sem diploma universitário e mais voltada ao setor de serviços, os mais escolarizados concentraram renda ao manter-se empregados e trabalhando remotamente.

As mulheres, que predominam em áreas de atendimento pessoal, também sofreram mais, aumentando a disparidade de rendimento em relação aos homens. Elas também estão tendo mais dificuldade, por causa dos filhos sem aulas presenciais, de trabalhar em casa.

O economista lembra que, após subir entre 1959 e 2014, a expectativa de vida dos norte-americanos vem caindo nos últimos anos -sobretudo pelo aumento da mortalidade precoce dos mais pobres.

Em termos políticos, estudo do Brookings Institution sobre as eleições de 2020 nos EUA revelou que áreas mais pobres (2.497 condados que respondem por apenas 30% do Produto Interno Bruto) votaram majoritariamente em Donald Trump -uma indicação de que os mais desfavorecidos aceitaram melhor seu discurso populista.

No final, Joe Biden venceu somente em 477 condados, mas mais populosos e que respondem por 70% da produção econômica norte-americana.

Para Milanovic, o aumento do endividamento e do déficit em quase todas as economias do mundo também exigirá, em algum momento, a reversão dos gastos estatais -o que pode provocar mais ondas de descontentamento no eleitorado e uma preferência por extremistas ou promessas difíceis de cumprir.

Na eleição presidencial do último domingo (24) em Portugal, por exemplo, o partido de extrema direita Chega! obteve mais de 500 mil votos e, segundo pesquisas, tem hoje 9% da preferência do eleitorado (era 1,3% em 2019).

Milanovic destaca também que, ao contrário das crises financeiras recentes ou mesmo das grandes guerras, a pandemia atual é genuinamente um fenômeno global -e ele afeta diretamente os mais pobres.

"Esse não será um aumento temporário na desigualdade, o que também não nos leva a uma situação de estabilidade no longo prazo."