RESPEITO ÀS GARANTIAS
A demanda pelo tribunal do júri no país é alta: pesquisa do Conselho Nacional de Justiça de 2019 mostrou a existência de 185,8 mil ações de competência do júri em tramitação, das quais 43 mil (23% do total) já tinham a sentença de pronúncia.
Decisões do STJ tem garantido respeito aos princípios da não culpabilidade, da plenitude da defesa e da presunção de inocência
(Divulgação).
O mesmo levantamento apontou que, entre 2015 e 2018, 52% dos julgamentos no tribunal do júri acabaram sem nenhuma punição ao réu, com predomínio de decisões que reconheceram a extinção da punibilidade (hipóteses previstas no artigo 107 do Código Penal). O estudo analisou 28,9 mil sessões do tribunal do júri feitas no Brasil nos últimos quatro anos.
Os procedimentos na fase do plenário, muitas vezes chegam ao Superior Tribunal de Justiça. Questões envolvendo, por exemplo, o uso de algemas pelo acusado e a inversão da ordem das questões submetidas ao conselho de sentença.
Ao analisar o AREsp 1.053.049, a 6ª Turma anulou a sessão do júri e determinou que fosse feito novo julgamento em plenário, dessa vez com o réu sem algemas — a menos que seu uso fosse justificado por algum motivo concreto.
Segundo o ministro Sebastião Reis Júnior — autor do voto que prevaleceu na decisão da turma —, o uso de algemas somente se justifica ante o concreto receio de que, com as mãos livres, o réu possa fugir ou colocar em risco a segurança das pessoas que participam da sessão – o que, para ele, não se verificava naquele caso.
O ministro mencionou ainda o fato de ter sido dado ao réu, mesmo condenado, o direito de recorrer em liberdade — o que, "por si só, demonstra ausência de periculosidade e, por conseguinte, ausência de motivo para que permanecesse algemado durante seu julgamento".
Em outro caso, no HC 506.975, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca reforçou o entendimento do tribunal no sentido de que o uso de algemas durante a sessão do júri necessita de fundamentação.
"A contenção por meio de algemas durante a realização da audiência no tribunal do júri não é um expediente que pode ser empregado sem critérios, devendo ser demonstrada sua necessidade em situações nas quais se vislumbre risco para a segurança do próprio acusado e das demais pessoas presentes no recinto."
Garantia antiga
Em outro caso, no julgamento do RHC 76.591, o ministro Rogerio Schietti Cruz citou exemplos de leis como o Código Criminal do Império, editado em 1830, e as Ordenações Filipinas, do século XVII, elaboradas já no sentido de implementar regras mínimas de humanização do processo penal. Ele destacou que, nos tribunais superiores, há julgados sobre o assunto desde a década de 1970.
Rogerio Schietti afirmou que a limitação do uso de algemas corresponde à garantia de que o acusado não receba tratamento equivalente a alguém já considerado culpado por sentença definitiva.
O ministro destacou que manter o réu algemado perante jurados leigos possui significado mais relevante do que se o julgamento fosse perante juiz togado, já que, para os leigos, o uso das algemas possui simbolismo no sentido da culpabilidade do acusado.
No caso em questão, o ministro disse que a justificativa dada pelo juiz — baixo efetivo de policiais no tribunal — não bastava para autorizar o emprego das algemas, o que justificava o provimento do recurso para reconhecer a nulidade do julgamento realizado com o réu algemado.
Roupas de passeio
A mesma preocupação com a imparcialidade levou a 5ª Turma a definir que o réu tem o direito de se apresentar para o julgamento na sessão do júri vestindo suas próprias roupas, em vez do uniforme do presídio (RMS 60.575).
"A par das algemas, tem-se nos uniformes prisionais outro símbolo da massa encarcerada brasileira, sendo, assim, plausível a preocupação da defesa com as possíveis preconcepções que a imagem do réu, com as vestes do presídio, possa causar ao ânimo dos jurados leigos", afirmou o relator do recurso em mandado de segurança, ministro Ribeiro Dantas.
Para o ministro, permitir o uso de roupas pessoais é uma forma de respeitar os princípios da não culpabilidade, da plenitude da defesa e da presunção de inocência. Obrigar o uso da roupa de presidiário, segundo a turma, caracteriza constrangimento ilegal.
Leitura de peças
Ao longo da sessão plenária do júri, diversas outras questões podem ser objeto de questionamento sob o ponto de vista da imparcialidade.
Para o STJ, a simples leitura da pronúncia ou das demais decisões que julgaram admissível a acusação não conduz, por si só, à nulidade do julgamento, o que só ocorre quando a menção a tais peças processuais é feita como argumento de autoridade, de modo a prejudicar o acusado.
Ao julgar o HC 248.617, a 5ª Turma analisou um pedido para anular o júri porque o representante do Ministério Público leu em plenário parte de um voto proferido no julgamento de recurso interposto pela defesa contra a sentença de pronúncia.
Ao fazer uma interpretação do CPP, o ministro Jorge Mussi afastou o argumento da defesa. "Tendo o Parquet lido trecho do acórdão referente ao julgamento do recurso em sentido estrito interposto contra a decisão de pronúncia, peça processual que foi disponibilizada aos jurados, e não havendo comprovação de que a menção a tal documento teria sido feita como argumento de autoridade — situação apenas afirmada pela defesa na presente impetração —, de modo a prejudicar o paciente, inviável o reconhecimento da eiva vislumbrada na impetração", avaliou o ministro.
Silêncio
Para a 6ª Turma, também não causa nulidade a menção ao fato de o acusado ter optado por permanecer em silêncio — desde que não haja exploração desse tema. Os ministros entendem que a regra do artigo 478 do CPP é explícita ao condicionar a nulidade à exploração do tema, em prejuízo do acusado.
Ao analisar um habeas corpus que pedia a anulação do júri em virtude da menção ao silêncio do acusado, o ministro Rogerio Schietti Cruz afirmou que é preciso comprovar que a questão do silêncio foi explorada pela acusação, prejudicando o réu (HC 355.000).
Gravação inaudível
A necessidade de demonstração de prejuízo, para fins de nulidade do júri, foi discutida em um caso de má qualidade da gravação da sessão de julgamento.
Em 2018, a 6ª Turma deu provimento ao recurso especial do Ministério Público e, por unanimidade, reformou acórdão que havia anulado uma sessão do júri por concluir que a mídia de gravação das provas produzidas durante o julgamento estava inaudível (REsp 1.719.933).
Para a 6ª Turma, não houve demonstração de prejuízo em virtude do possível defeito no DVD, inclusive porque o réu e seus defensores estavam presentes à sessão e, portanto, conheciam o teor das gravações.
O conteúdo em questão foi apresentado em outras formas, tendo sido degravado, segundo as informações do processo. Esse fato, segundo o ministro Sebastião Reis Júnior, relator, torna a anulação do júri medida desnecessária, já que não houve prejuízo ao acusado pela baixa qualidade do material gravado em DVD.
O relator destacou que o artigo 405 do CPP permite o registro das provas em mídia eletrônica sem a necessidade de transcrição. Nesses casos, eventual prejuízo deve ser suscitado e comprovado no momento oportuno, já que ensejaria nulidade de natureza relativa — o que, segundo o ministro, não ocorreu na hipótese discutida no processo.
Defesa breve
No HC 365.008, os impetrantes sustentaram a nulidade do júri alegando que o réu ficou indefeso em virtude da brevidade da sustentação oral na sessão.
Embora o tempo concedido às partes seja igual — uma hora e meia para cada —, o defensor, no caso, falou por apenas nove minutos, enquanto a acusação utilizou 63 minutos para expor seus argumentos.
No pedido de habeas corpus, a defesa afirmou que a atuação do outro advogado que representou os interesses do réu na sessão do júri foi irrisória e ineficaz, caracterizando ausência de defesa.
O réu foi condenado a 16 anos de reclusão por homicídio. Segundo o ministro Rogerio Schietti Cruz — autor do voto vencedor neste caso —, o fato de ter havido sustentação oral em plenário por tempo reduzido não leva, necessariamente, à conclusão de que o réu esteve indefeso — principalmente quando não houve recursos, o que, para o ministro, sugere "a conformidade entre acusação e defesa".
Para Schietti, a alegação de nulidade sem demonstração do prejuízo — e por meio de habeas corpus, que não admite aprofundamento em análise de provas — inviabiliza aferir se houve ou não a suposta deficiência defensiva, "que não pode ser reconhecida apenas porque a sustentação oral foi sucinta e o julgamento culminou em resultado contrário aos interesses do réu".
Fator surpresa
No julgamento do HC 225.478, a 5ª Turma debateu o pedido de anulação de um júri por causa de documento estranho aos autos apresentado apenas na fase de debates em plenário.
"De acordo com a norma contida na antiga redação do artigo 475 do Código de Processo Penal, atualmente disciplinada no artigo 479 com a reforma processual operada com o advento da Lei 11.689/2008, é defeso às partes a leitura em plenário de documento que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias", explicou o ministro Jorge Mussi, relator para acórdão.
Segundo o processo, durante a sessão plenária, o promotor retirou um pedaço de papel e começou a ler o que seria uma ameaça feita pelo réu a uma testemunha do homicídio — atitude contestada prontamente pela defesa.
"A atuação de qualquer das partes em desconformidade com a norma em comento importa na ruptura da isonomia probatória que deve reinar em toda e qualquer demanda judicializada, mormente no âmbito de uma ação penal, cuja resposta estatal, na maioria das vezes, se volta contra um dos bens jurídicos mais caros ao ser humano, e, principalmente, no procedimento dos crimes dolosos contra a vida, no qual o juízo condenatório ou absolutório é proferido por juízes leigos, dos quais não se exige motivação", declarou Mussi.
Prevaleceu na 5ª Turma o entendimento de que não era necessário para a defesa comprovar o prejuízo sofrido nessa hipótese, ante a natureza imotivada das decisões dos jurados, pois seria impossível saber se o documento lido pelo promotor foi relevante para a formação do convencimento do conselho de sentença.
"Uma vez constatada a quebra dessa isonomia probatória, assegurada pela norma em comento, não há como assegurar que o veredito exarado pelo conselho de sentença tenha sido validamente formado, diante da absoluta impossibilidade de se aferir o grau de influência da indevida leitura de documento não juntado aos autos oportunamente, justamente porque dos jurados não se impõe o dever de fundamentar", concluiu o ministro.
Recusa Imotivada
Na escolha dos sete membros do conselho de sentença, a lei assegura a cada parte o direito de recusar, sem precisar justificar, até três jurados sorteados. Em 2015, a 6ª Turma analisou no REsp 1.540.151 uma controvérsia gerada pelo fato de que o mesmo advogado atuava em favor de mais de um réu.
Quando ele fez a quarta recusa imotivada, o Ministério Público questionou, alegando que as recusas estariam limitadas a três. O juiz que presidia a sessão acolheu as razões do MP.
A defesa suscitou a nulidade do júri no STJ. Ao analisar o caso, o ministro Sebastião Reis Júnior, relator, destacou que a garantia da recusa é dos réus, e não do advogado.
"De fato, a recusa é da parte, do réu, e não do defensor. E quando não há um consenso entre as partes, como no presente caso, em que houve impugnação expressa na ata de julgamento do júri, deverá ser dado a cada um dos réus o direito de fazer a sua própria recusa, para garantir a plenitude de defesa a ambos os réus", explicou o ministro ao justificar a anulação do júri.
Ordem das questões
Em 2008, o Congresso Nacional promoveu ampla reforma em dispositivos do CPP referentes ao tribunal do júri. Uma das partes alteradas pela Lei 11.698/2008 foi sobre o questionário a ser respondido pelo conselho de sentença — com a inclusão da possibilidade de absolvição genérica ("O jurado absolve o acusado?") — e a ordem das perguntas.
Após as mudanças, vários questionamentos chegaram ao STJ em relação à formulação dos quesitos e à sua ordem.
No REsp 1.796.864, a 5ª Turma não anulou o júri pelo fato de o quesito referente à desclassificação ter sido formulado antes da pergunta sobre a absolvição, por entender que o prejuízo não foi demonstrado. Para a defesa, haveria motivo de nulidade absoluta do julgamento.
O ministro relator, Reynaldo Soares da Fonseca, explicou que a formulação dos quesitos atende à ordem do artigo 483 do CPP, e que cabe às instâncias de origem analisar quais seriam as teses principal e subsidiária da defesa para fins de cumprimento dessa regra.
Além disso, o ministro destacou que o entendimento do STJ é no sentido de que, se a defesa construiu a tese principal absolutória (legítima defesa) com a tese subsidiária desclassificatória (ausência de animus necandi), e havendo a norma processual permitido a formulação do quesito sobre a desclassificação antes ou depois do quesito genérico da absolvição, a tese principal deve ser questionada antes da tese subsidiária, sob pena de causar enorme prejuízo e evidente violação ao princípio da amplitude da defesa.
No caso, a corte de origem entendeu que a quesitação a respeito da desclassificação deve ser anterior à da absolvição, com o objetivo de firmar a competência do tribunal do júri para o julgamento do fato.
Entretanto — destacou o ministro —, mesmo a inversão dos quesitos não faria diferença para o resultado final. "Embora em momento inadequado, os jurados responderam de maneira negativa ao quesito referente à desclassificação para o delito de lesão corporal grave, mantendo o tribunal do júri competente para o julgamento do feito."
O ministro afirmou que posteriormente o conselho de sentença foi questionado a respeito da absolvição, rejeitando essa hipótese.
"Mesmo sendo incorreta a ordem de questionamento, não houve alteração no resultado do julgamento, mantendo-se a condenação por homicídio tentado. Houvesse sido estabelecida a ordem correta, seria negada a absolvição e após mantido o reconhecimento do crime tentado, com igual condenação por homicídio tentado. As duas teses foram devidamente analisadas e respondidas pelos jurados, não se podendo falar em prejuízo para o envolvido", concluiu o relator.
Fonte:Superior Tribunal de Justiça.
ConJur