Muito se tem falado sobre uma guinada liberal no Brasil, especialmente após a eleição do presidente Bolsonaro, com propostas econômicas capitaneadas pelo Dr. Paulo Guedes, oriundo da Escola de Chicago, um dos berços deste pensamento, no mundo. A Escola de Chicago evoluiu, mas nossos gestores parecem perdidos no tempo.
Acho que meu inconsciente estava cheio desses pensamentos liberais e sonhei. Sonhei que estava de volta à Universidade de Ottawa, onde fiz pós-graduação; e tive a oportunidade de estudar com alguns dos melhores expoentes liberais canadenses, alguns ex-alunos do Professor Milton Friedman.
No sonho me encontrei com um antigo professor de Economia de Mercado. Iniciamos uma discussão sobre o liberalismo em especial, o liberalismo no Brasil.
Iniciei perguntando: Afinal de contas, professor, no que consiste o liberalismo em sua versão neste início de século XXI? Estamos, mesmo, sendo conduzidos por ideias liberais no Brasil?
Disse-me o professor Harvey: “O liberalismo tem que ser entendido como um sistema econômico baseado na livre iniciativa, na propriedade privada dos meios de produção e no estatuto da concorrência. No capitalismo liberal os empreendedores correm riscos e buscam o lucro no livre mercado. O Brasil não fez seu dever de casa da história. O capitalismo começa com menos Estado, menos interferências e menos impostos, oportunidades iguais para todos. No caso brasileiro foram se consolidando sistemas de exclusão e cadeias protecionistas, que distorceram as relações de mercado.”.
Mas professor, o atual ministro Guedes está buscando reduzir a presença do Estado na Economia, não acha? Fala em privatizar, defende uma redução de subsídios para as empresas.
“Veja bem, desculpe-me pela sinceridade, seu capitalismo é de mentirinha. Nunca fizeram uma distribuição de terras para fomentar a criação de uma classe média produtora no campo, gerando milhares de médias propriedades, altamente produtivas e concorrentes umas das outras. Esses investidores rurais são o princípio de defesa da ordem liberal burguesa. Assim o foi em vários dos atuais países ricos. Ali deveria ter começado o capitalismo brasileiro. O que foi feito no passado? Vocês da elite econômica e proprietária foram colônia de Portugal, até 1822 e seguiram sendo um regime de absolutismo mercantilista até o Primeiro Império. Seguiram reforçando a presença do Estado em total alinhamento com produtores de café. Até comprar café para queimar o Estado brasileiro foi capaz de fazer no período Vargas.”
“Voltando ao Segundo Império o país seguiu sendo colônia da Inglaterra, sempre envoltos em empréstimos de grandes casas bancárias europeias, não criou mercados concorrenciais, não gerou assalariados urbanos e não expandiu a economia além do Rio de Janeiro e de São Paulo.”
“Onde estavam seus empreendedores? Onde estava a liberdade de trabalhar e ter renda? Criaram uma sociedade do compadrio e do jeitinho. Muito mais se garantiu a exploração de mão de obra barata do que a formação de mercados consumidores de classes médias pujantes e educadas”.
“Depois prorrogaram mais do que deveria ser razoável a escravidão, retardando o crescimento de um mercado de trabalho assalariado e uma vez mais se rendendo às vontades de uma elite escravagista e atrasada. Não desenvolveram mercados consumidores ativos, desenvolveram favelas e segregação social no espaço urbano.”
“No seu país as elites são filhas de um Estado que sempre foi interventor a seu favor. Um país que praticamente inventou o patrimonialismo, a apropriação indébita e primitiva de todos os direitos e propriedade. Verifique suas leis, veja a quem elas interessam”.
Mas professor, já tivemos bons momentos de crescente industrialização, com muita força do capital privado. Tivemos momentos de privatizações que alavancaram investimentos de grandes grupos econômicos.
“Vocês não querem entender o que nos ensinou Smith no século XVIII. O Estado só deveria se preocupar com a manutenção dos regimes concorrenciais, com a segurança pública e do país e garantia da soberania nacional. Adam Smith, também enxergou a importância da educação, assim como a relevância da divisão do trabalho e do progresso técnico”.
“O capitalismo liberal exige que as pessoas tenham oportunidades iguais para empreender, circular, investir, vender e comprar. O Brasil sempre reforçou a segregação social e o preconceito. O Brasil não tem cultura de liberalismo e nem quer ter. Aqui todos dependem do Estado, no verdadeiro sistema liberal a iniciativa privada é que resolve os problemas de alocação de recursos, com liberdade para ver desenvolver seus negócios.”
“No Brasil, vocês não controlam os oligopólios. Vocês os alimentam. No Brasil seu sistema tributário mantém alguns poucos privilegiados que nadam em subsídios e pagam propinas aos gestores de suas contas quase públicas. Enquanto quem consome e faz a economia girar é atolado em impostos indiretos e endividamentos induzidos. Já percebeu como é difícil reduzir impostos e fazer uma maior justiça tributária em seu país? Porque o dinheiro é tão caro em seu país? Porque é tão difícil se especializar naquilo que vocês são bons, sem a mão do estado?”
“Vocês têm cinco bancos que dominam 90% do crédito, recurso que nunca chegam às pontas, as taxas de juros são preços de monopólio inadequados aos negócios. Ninguém os controla, sem Banco Central finge de morto enquanto o dinheiro público circula em Fundos rendendo altos juros e aumentando a dívida pública.”
“Capitalismo liberal de verdade requer juros baixos, taxas de lucro compatíveis e recursos aplicados na produção de bens e serviços num economia de livre concorrência.”
“No Brasil sua agricultura é subsidiada e seus empreendedores rurais não conseguem viver sem um bom incentivo fiscal. Onde está o liberalismo econômico? Até mesmo suas indústrias têm sido subsidiadas com redução de impostos, várias renúncias fiscais e direcionamento de fatias de gastos públicos.”
“Porque não fazem uma reforma bancária que conduza ao liberalismo no mundo financeiro? Porque os grandes bancos têm que controlar toda a cadeia financeira, incluindo seguradoras, corretoras, financeiras, investimentos e crédito ao consumidor? Onde estão os pequenos bancos regionais? Porque não ousam desburocratizar, desregulamentar, tratar com mais liberdade à iniciativa privada?”
Professor, qual sua avaliação do atual governo?
“Eu vejo, leio e escuto muitas bravatas. Onde estão as privatizações? Porque não reduziram a presença do estado na economia? Porque seguem alimentando os bancos e os grandes empresários? Porque o número de ministérios voltou a crescer? Porque seu sistema judiciário é tão caro e ineficiente, mesmo se comparado com países da OCDE?“
“Teoricamente seu Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) seria a autarquia federal por excelência para fazer funcionar o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, ao lado da Secretaria de Acompanhamento Econômico. Não vejo a gestão econômica reduzir a força dos monopólios. Não vejo o interesse na educação que trás igualdade de oportunidades. Não vejo formação de empresários rurais por meio da distribuição de terras públicas, com capacitação adequada. Não vejo a simplificação de regras e taxas para quem quer investir, muito menos a saída do Estado de certos setores da economia, onde jamais deveria ter entrado.”
Professor, então somos falsos liberais?
“Paulo, me desculpe por minhas palavras, o Brasil é um país com enorme potencial, recursos quase inesgotáveis, mas não conseguiu ser um país de economia liberal capitalista plena. O Brasil se assemelha a uma mistura de circo com manicômio, onde enquanto a música toca e o futebol é jogado, quadrilhas vão sendo formadas e os palhaços administram, sem correr riscos.”
“O Brasil merece um banho de capitalismo, com regras simples e liberdade para que os verdadeiros empreendedores atuem, para que as leis da oferta e da procura funcionem.”
“O Brasil merece liberdade de escolha para seus cidadãos, com investidores que buscam lucratividade e oportunidades de acumulação de capital; e mercados consumidores de verdade, com preços sempre pressionados pela concorrência. Com respeito ao meio ambiente, que certamente Adam Smith teria acrescentado às funções do Estado capitalista burguês. Mesmo na sua grandiosidade analítica, ao ver nascer o capitalismo, não conseguiu antecipar os problemas ambientais, mas antecipou problemas sociais”.
Acordei assustado.
*Paulo Roberto Paixão Bretas /Economista, Pesquisador e Professor de História Econômica.