Sérgio Marchetti*- Convidado
Quando era criança (não vou dizer onde) com cinco anos de idade, eu tive um tio, ainda muito jovem, que nos levava, a mim e a meu irmão de seis anos, para passear, comer doces e sempre, mesmo com frio, nos presenteava com os picolés de groselha. Era filho carinhoso, irmão dedicado, tio zeloso e amigo presente. Goleiro do América de Barbacena, habilidade que eu e meus irmãos herdamos dele. Considerado alto para a época, com seus 1,88m, fez sucesso com suas atuações em partidas do campeonato local. Era poeta e adorava La vie en rose, cantada por Edith Piaf. De tanto ouvir, aprendi a gostar.
Morávamos em frente à Escola Agrícola Federal. Meu tio, sabendo que gostávamos de novidade, nos levou para um piquenique naquela escola. E, como dizem que o melhor da festa é esperar por ela, na noite anterior nem dormimos direito. E as merendas… doce de goiabada, bolachas, doce de leite, Nescau, sanduíche e guaraná. E nada disso fazia mal.
Na saída, tio José perguntou se passaríamos a semana no passeio, pois a “matula” estava grande. Não me lembro de ter sobrado nada. Vimos búfalos, gansos, vacas, cavalos, muitas hortas, flores e salas de aula bem equipadas. Afinal, tratava-se de uma escola de ensino agrícola para internos. À tarde, quando regressamos, nossa mãe nos esperava com um abraço inexplicavelmente carinhoso que só mãe sabe dar.
Tivemos que descrever todo o passeio e ainda dizer se fomos obedientes. Fomos sim, mas meu tio jamais diria o contrário, devido ao amor que sentia por nós. E, ao nos despedirmos, ele nos prometeu passear na estação para ver os trens chegarem. Tínhamos trens de passageiros, sim, leitores mais jovens.
Alguns dias depois, veio a visita à estação. A plataforma era e é imensa, até hoje. Apitos fortes anunciavam que um trem estava chegando, enquanto outro saía. Tio José, apesar de atento a tudo, teve um descuido e eu, curioso que era (não sou mais), como disse o policial da estação, adentrei pela porta do corredor e evadi pela plataforma de saída. Ouvindo aquela declaração, o pobre José pegou meu irmão pela mão e saiu desesperado, com lágrimas nos olhos e um fardo de responsabilidade pesando uma tonelada.
Não morri. Fiquem tranquilos, preocupados leitores. Mas poderia. Atravessei o trilho e quis ver como era o vagão do trem. Um fiscal segurou minha mão e esperou pelo resgate. Disse que o que fiz era muito perigoso e que aquele fato jamais deveria se repetir. Voltamos para casa silenciosamente, enquanto meu tio procurava encontrar palavras que narrassem o acontecido, sem que fosse repreendido por meu pai; porque carregava a certeza de que meu irmão iria tagarelar sobre o fato. Ao chegarmos, meu irmão tagarelou e meu pai quase arrancou a minha orelha.
Desde que nascemos, nosso tio esteve conosco, inclusive ajudando a nos dar mamadeira. Mas novos dias vieram e ele não voltou. Sentimos sua falta, perguntamos à nossa mãe por que ele não veio nos ver. Mamãe, com olhar perdido, nos disse que ele inventou uma brincadeira de se esconder, e que talvez não viesse mais. E não veio. Chorei, fiz pirraça… e ele não veio.
Foi num setembro, que ainda não era amarelo, que meu amado tio, aos 24 anos, tirou sua própria vida.
*Sérgio Marchetti é consultor organizacional, palestrante e Educador. International Certification ISOR em Holomentoring, Coaching & Advice (coaching pessoal, carreira, oratória e mentoria). Atuou como Professor de pós-graduação e MBA em instituições como Fundação Getúlio Vargas, Fundação Dom Cabral, Rehagro e Fatec Comércio, entre outras. É pós-graduado em Administração de Recursos Humanos e em Educação Tecnológica. Trinta anos de experiência em trabalhos realizados no Brasil e no exterior. www.sergiomarchetti.com.br