Amauri Meireles (*)
Usando uma expressão que está na moda, há determinados acontecimentos, envolvendo o setor público brasileiro, que chegam a ser surreais. Por exemplo, elegemos pessoas para o Executivo e para o Legislativo com a missão de, respectivamente, em nosso nome, administrar o ente federativo (União, Estados e Municípios) e legislar e fiscalizar o Executivo. A partir do momento que tomam posse, ocorre uma transformação estarrecedora: deixamos de ser seus patrões e passamos a ser seus súditos. Salvo pequenas e raríssimas exceções, ocupam cargos para se locupletarem, quase sempre com o apoio de apaniguados que foram colocados, por eles, em estratégicas sinecuras. Fazem o que não queremos e não fazem o que queremos, colocando seu interesse particular à frente do interesse coletivo. Nos impõem certos absurdos e temos de aplaudir, achar bom e bonito, sob pena de cancelamento.
O pior é que erram por ignorância intelectual ou por descumprimento intencional da legislação. Dentre inúmeros fatos, dessa natureza, que ocorrem diariamente, um deles, em especial, chamou minha atenção. É que foi inaugurada, em 02/09/25, a Academia de Formação da Divisão de Elite da Guarda Municipal (GM-Rio) – Força Municipal, em espaço cedido pela PRF, em sua sede no RJ. É um efetivo especializado para “enfrentamento de delitos urbanos, especialmente roubos e furtos, a partir da atuação preventiva e ostensiva em áreas de grande circulação da cidade, como vias públicas, praças e estações de transporte coletivo”. Dentre outras autoridades, o prefeito Eduardo Paes declarou: “Eu sempre defendi a criação de uma divisão de elite bem treinada, equipada, bem remunerada e armada para apoiar o papel do estado na segurança pública. (…) Serão submetidos ao mais rigoroso processo de formação de uma força municipal do país. (…) O respeito e a proteção ao cidadão honesto e trabalhador são princípios inegociáveis dessa corporação”.
Ou seja, muita coreografia e pouco samba-enredo. Em outras palavras, muita bravata sustentada em infringência à decisão do STF. Num rápido retrospecto, em 13Jun25, foi sancionada a Lei Complementar municipal 282/2025, que autoriza a formação de uma “divisão de elite” da guarda municipal do Rio de Janeiro, com funcionários temporários, com direito a porte de arma de fogo, e instituindo o cargo de confiança de gestor de Segurança Pública Municipal. A Federação Nacional de Sindicatos de Servidores das Guardas Municipais (Fenaguardas) entrou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1238, no Supremo Tribunal Federal (STF) contra trechos dessa lei, por considerá-la inconstitucional. O relator, Ministro Edson Fachin, encaminhou a petição à PGR – que ainda não se manifestou, e também à AGU, que constatou violação à Constituição. Num breve parênteses, lembre-se que, presente na solenidade de inauguração da Academia, estava o senhor Ministro da Justiça e Segurança Pública Ricardo Lewandowski (ex-ministro do STF), que declarou: “Estamos comprovando a importância da integração de todas as forças policiais, nos três níveis de governo, para um combate eficiente contra a criminalidade.
Estamos estabelecendo um novo modelo de formação das guardas municipais”. Ora, além de extravasar um pensamento confusional, não percebeu que estava endossando uma inconstitucionalidade? O mais importante, porém, é o fato de a Fenaguardas e a AGU condenarem a forma de preenchimento de cargos, mas não consideraram o erro mais grave, que é a criação da citada divisão, para realizar tarefas que extrapolam a decisão no Recurso Extraordinário (RE) 608588, com repercussão geral (Tema 656). Quero deixar claro que, ao contrário de alguns colegas e, até, de associações, sou favorável à existência de guardas municipais. São um grande reforço para se reduzir a insegurança em nosso ambiente, visto que o primeiro e grande afastamento da normalidade da ordem – caracterizando a alteração da Ordem – decorre de inobservância de regras naturais de convivência, desvios de conduta, acidentes, contravenções penais, crimes de menor potencial ofensivo.
São ações a serem enfrentadas pelas guardas municipais, realizando o policiamento ostensivo, uniformizado, isto é, o basilar, o de proximidade, ou, conforme salomônico neologismo do senhor Ministro Luiz Fux, o policiamento ostensivo comunitário. O segundo afastamento da normalidade, caracterizando a grave alteração da Ordem, é provocado por crimes em geral, desastres e outros eventos mais graves. Gradativamente, mas não, necessariamente, de forma sucessiva, se enquadram em perturbação da Ordem e grave perturbação da Ordem.
Tais eventos são defrontados pelas Polícias Militares, realizando policiamento ostensivo, uniformizado, e, na sequência, somente ela realiza as demais operações de polícia ostensiva (de choque e de restauração) que lhe são próprias. Essa transposição de funções – quando a situação da Ordem passa de “alteração” para “grave alteração” – da guarda municipal para a Polícia Militar, já acontece em relação a esta e o Exército Brasileiro – quando a Ordem passa de “perturbação” para “grave perturbação”. Mais uma vez, é apresentada uma “inteligente e criativa” solução política para uma demanda técnica, o que, provavelmente, não vai dar certo, porque restabelece a celeuma que, pressupostamente, o STF já teria solucionado. Conforme Sêneca: “Se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável”. Enfim, um cenário clássico de inadequações, arroubos e equívocos.
(*) Coronel Veterano da Polícia Militar de Minas Gerais
Foi Comandante da Região Metropolitana de Belo Horizonte