A crise brasileira tem várias camadas e várias dimensões. A crise brasileira se reflete de maneira diferente em cada grupo de cidadãos, dependendo de sua condição social, consciência da realidade vivida e de suas preocupações com seu dia a dia. A crise é, portanto, grave para todos e pior para os mais pobres; para os mais velhos; para os desempregados e trabalhadores informais; para os indígenas e quilombolas; para as mulheres; para os doentes crônicos; para os funcionários públicos e para os micro e pequenos empresários; para citar alguns casos específicos.

Temos uma crise que se manifesta em dois eixos fundamentais: no primeiro eixo temos uma Pandemia gerando uma crise de saúde, produzida por um vírus da família dos coronavírus, que coloca em risco a vida das pessoas em escala acelerada e amplitude mundial. Uma rapidez de transmissão e contágio nunca vista e uma aceleração de óbitos surpreendente, exaurindo as energias de médicos, enfermeiros e demais profissionais e sistemas de saúde. O segundo eixo é o Econômico, relacionado com o primeiro eixo, decorre da paralização de atividades e da produção de choques de oferta e de demanda, acompanhada de desemprego e aumento da pobreza.

A crise viral mostrou de maneira cristalina que algumas concepções de sociedade e certos conceitos que vinham sendo defendidos pelos neoliberais estão fracassando. O vírus mostrou que a sociedade quando entregue às livres forças do mercado, não consegue sobreviver. O mercado envolto numa crise pandêmica desta dimensão é como uma criança perdida querendo atravessa uma avenida de muito movimento. Quem lhe dará a mão?

A crise virótica mostrou até que a natureza é capaz de melhorar suas condições de existência quando é reduzida a interferência do homem. As cidades estão menos poluídas, as águas do mar estão mais limpas, os animais voltaram a circular em ambientes antes tomados pela ação dos homens.

A crise demonstrou que o SUS – Sistema Único de Saúde, patrimônio estatal brasileiro, é uma conquista de todos e a única garantia de se organizar a sociedade em torno do combate à pandemia, no Brasil, atendendo aos cidadãos e cidadãs de maneira democrática. Um sistema que se for destruído, ou minimizado, colocará em risco a vida no país. E sabemos que saúde é direito constitucional e em casos de crise profunda, não há sistema privado que seja capaz de dar conta do recado. Sem contar que sistemas privados já selecionam por si só a qualidade de seu atendimento pelo padrão de renda.

Falando ainda do Eixo da Pandemia, o vírus nos mostra como é triste a perda de entes queridos fora da hora, isso porque sem a pandemia talvez vivessem mais alguns anos. Nem sequer podemos velá-los ou enterrá-los. O fim desta história depende de vacinas que não existem e remédios que não foram descobertos.

A pandemia mostra, também, que fomos negligentes com os investimentos públicos, a sociedade deixou-se levar pelos discursos fiscalistas que só faziam pregar cortes de gastos e ajustes nas contas públicas. Narrativas que nos amedrontaram com o crescimento da relação dívida/PIB, como se fosse impossível para um país como o Brasil não arcar com a rolagem desses compromissos no futuro, mesmo com juros candentes e reservas internacionais da ordem de 340 bilhões de dólares.

Temos uma equipe econômica que reza religiosamente na cartilha do teto de gastos, dos cortes de despesas e da redução de investimentos. Tudo voltado para o “deus equilíbrio fiscal”. Até o momento não encontraram uma solução política viável  para o crescimento das folhas de salário dos órgãos públicos, mesmo que saibamos que esta despesa encontra-se estabilizada, mas segue elevada. A Reforma da Previdência que era a mãe de todas as reformas e que abriria espaço para a solução de todos os problemas contribuiu até agora com muito pouco.

Enquanto o mercado aplaudia tal política, o vírus mostrava a existência de brasileiros e de brasileiras sem acesso à água potável e encanada que, portanto, não poderiam fazer sua higiene pessoal em meio à pandemia com a devida normalidade.  Mesmo que sabendo da necessidade de se lavar as mãos de forma quase compulsiva, várias vezes ao dia, não se inventou uma forma de fazer sem água. Distribuir álcool gel em massa é sonho.

A covid 19 mostra também as consequências da falta de esgoto e da coleta de lixo, vetores de muitas doenças que só trazem o agravamento da situação. A covid 19 faz a sociedade refletir sobre a impossibilidade de seguir políticas de isolamento quando se é pobre e se tem que viver em casebres apertados, onde moram várias pessoas de todas as idades, apertadas em cubículos miseráveis. Como haver isolamento quando cinco pessoas, entre adultos e crianças, têm que dormir num mesmo cômodo? O vírus denuncia a falta de investimentos públicos para os mais vulneráveis. O vírus denuncia a falta de interferência inteligente do Estado. O vírus grita que estamos vivendo numa sociedade desigual e injusta, onde sobra para poucos e falta para muitos miseráveis. Como não ir para as ruas enfrentando doenças e a violência cotidiana se é preciso levar algum dinheiro para casa, todo santo dia? Pobre tem condições de fazer isolamento sem um projeto descente de renda mínima?

E quanto mais se corta gastos, e quanto mais os investimentos se reduzem, mais a economia entra no buraco, mais os impostos caem e mais o déficit fiscal aumenta. Os problemas aumentam, pela falta de receita e ausência de dinamismo econômico. Pela falta de incentivo aos investimentos privados, que caminham sempre juntos com os investimentos públicos, desde que se tenha a possibilidade de fazer o cálculo econômico e enxergar a possibilidade de vender e de lucrar. Inicie-se um grande programa de obras públicas para ver se a economia não deslancha. No final de março o Banco central já havia liberado 1,2 trilhão de reais para os bancos. A cifra, divulgada no dia 23 de março, pelo próprio BC, equivale a 16,7% do Produto Interno Bruto. Enquanto isto o Ministério da Economia faz cara feia e desaprova um plano tímido de 30 bilhões de reais articulado pela Casa Civil da Presidência.

A doença neoliberal, estágio infantil da economia brasileira, vem trazendo danos, desde meados de 2014. A recessão produzida nos levou a um recuo  algo em torno de 7% do PIB, nos anos de 2015 (-3,8%) a 2016 (-3,3%) e nos fez andar de lado em 2017, 2018 e 2019, com pífios crescimentos em torno de 1,1% ao ano, em cada ano. Então não é de agora que o desemprego está elevado, cerca de 12 milhões de brasileiros estão fora do mercado de trabalho desde 2018 e muitos mais irão perder seus empregos, motivo para falarmos do segundo eixo da crise do coronavírus, o Eixo Econômico.

A economia brasileira em crise vai envolvendo a sociedade numa falsa dicotomia entre salvar a saúde que trás a vida, ou salvar a economia que trás a possibilidade de seguir vivendo. Falso porque sem saúde não há como qualquer pessoa trabalhar e cada momento tem que ter sua conduta e sua forma de resolver os problemas.

No atual momento o único remédio que vem demonstrando eficácia para controlar a pandemia, no sentido de evitar a aceleração do contágio e sua rápida difusão é o isolamento social, a maioria das atividades econômicas precisa estar paralisada. Não se pode permitir o adensamento de pessoas. Onde há multidões, há o risco de maior contágio e disseminação. Adeus shows e adeus futebol nos estádios; adeus reuniões festivas, festas de aniversário; adeus participação em velórios.

Para evitar que o sistema de saúde entre em colapso pelo excesso de demanda por serviços de saúde, num mesmo momento, por muita gente doente chegando aos hospitais, ao mesmo tempo, será preciso seguir em isolamento social. Até que se demonstre que a doença está arrefecida com queda dos doentes e das mortes. Saber este momento depende de muitas coisas, inclusive da testagem em massa da população, depende de estatísticas confiáveis. Coisa que o Brasil não conseguiu se organizar para tanto, os sinais de subnotificações da doença são claros.

Com isolamento social é possível impedir que os sistemas público e privado de saúde entrem em colapso, mas ao mesmo tempo trava o funcionamento pleno da economia, com a paralização da circulação das pessoas e de dinheiro. Paralisa as fábricas e mantém o comércio fechado, mantendo-se apenas as atividades essenciais. Impossibilita a prestação de serviços em condições desejáveis. Tudo passa a funcionar em módulo lento e reduzido, produzindo-se uma crise econômica de choque de oferta (redução dos bens e serviços oferecidos à sociedade) e de demanda (forte redução do consumo e dos gastos das famílias). Já se fala em crescimento econômico 7,5% negativo em 2020.

As consequências do segundo eixo da crise serão nefastas, mesmo com as interferências minimizadoras que estão sendo adotadas pela sociedade e pelo governo, porque se mostram insuficientes e de efetividade lenta e burocrática. Se mostram mal distribuídas e estão longe de resolver graves problemas dos estados e municípios, com sua arrecadação em queda livre.

A recomendação dos economistas no mundo inteiro é uma só salvar vidas e salvar os agentes econômicos. Como? O Estado deve interferir injetando dinheiro seja para as pessoas gastarem, seja oferecendo liquidez para que não falte crédito para famílias e empresas endividadas, seja apoiando as populações mais carentes com cestas básicas e abrigo adequado. Mesmo assim o dinheiro entregue aos mais vulneráveis tende a parar nos bancos, porque banco não quer conviver com a inadimplência e banco não ignora seus riscos sistêmicos e nem é  entidade beneficente. Banco faz conta e analisa as possibilidades de levar calotes. Banco aprendeu a não correr riscos, banco compra e repassa riscos. Só irá correr riscos se o governo compartilhar com ele destes riscos.

Daí que as empresas seguirão tendo dificuldades de caixa, dificuldades de seguir produzindo, dificuldades de pagar seus compromissos. Muitas irão encerrar suas atividades, porque há problemas na forma e na quantidade que o auxílio está sendo disponibilizado. Porque já vinham enfrentando problemas e agora tudo está mais grave.

O desemprego vai seguir aumentando, mesmo que num primeiro momento, utilize-se das férias coletivas, para depois reduzir as jornadas de trabalho. Estando o governo arcando com parte dos salários, até determinados limites e determinadas faixas de rendimentos, para que as empresas aceitem manter a mão de obra empregada por três meses após o encerramento do subsídio. Depois, em não se havendo chances de recuperar a atividade econômica, as empresas demitirão, aliás, já estão demitindo. E o desemprego poderá ser acrescido, até o mês de junho de 2020, em mais 2,5 milhões de trabalhadores, podendo chegar a mais de 14 milhões de brasileiros desempregados, numa hipótese considerada otimista. No pior cenário poderemos chegar a 20 milhões de desempregados em setembro de 2020. Sem contar a massa de trabalhadores informais (hoje 40% da força de trabalho) e 5 milhões de desalentados (4,2 % da força de trabalho).

Mesmo que a atividade econômica vá se recuperando aos poucos, nada será como antes e a chamada normalidade será outra. Especialistas dizem que dos que forem demitidos voltarão apenas 80% a 85%. Os varejistas irão reabrir suas lojas físicas muito mais como “show-rooms”, porque seu forte passará a ser vendas “on line” - a força estará no ”e-commerce”. Bares e restaurantes terão como carro chefe os serviços de entrega e seu layout será adequado para menos mesas e mais distância entre os comensais. Também as escolas estarão se voltando muito mais para o ensino híbrido com forte elemento on-line e poucos encontros presenciais. Os estudantes terão que reaprender a estudar e os professores terão que reaprender a dar aulas.

Já caminhando para o final deste texto é bom lembrar que mesmo com a reabertura de pontos comerciais e das fábricas haverá problemas de abastecimento em decorrência de falhas nas cadeias produtivas nacionais e internacionais. A crise nos mostrou como não temos segurança de abastecimento e como nos tornamos dependentes de matérias primas, suprimentos em geral e produtos finais importados, principalmente da China. Enquanto isto nosso parque industrial virá sucata e o Brasil se desindustrializa rapidamente. Nem mesmo máscaras e demais EPIs – equipamentos de proteção individual, conseguimos produzir em solo nacional.

Também é bom lembrar que enquanto setores como hotéis, bares e restaurantes, companhias aéreas e setores de atividades turísticas terão muitos problemas para se recuperarem da crise, outros setores como supermercados, farmácias, indústria farmacêutica, indústria de produtos de limpeza, serviços de entrega e setor financeiro, seguirão muito bem obrigado. O importante é que cada um de nós saiba se reinventar e saiba ficar atento às informações verdadeiras para não sermos passados para trás. Para conseguirmos suplantar as animosidades.

O que surge é uma imensa oportunidade para pensarmos na saída da crise com mais investimentos do Estado, contemplando um plano de médio e longo prazo para colocarmos a economia em crescimento sustentável. Recuperar o papel do planejamento econômico, quem sabe aprender com a China? Só depois se pensa em equilíbrio fiscal e teto de gastos. Investir é preciso! Liberais devem ser isolados. É tempo de Estado e empresas, políticos de todos os matizes, ajudarem a tirarmos o país do buraco, com redução da pobreza e distribuição dos ônus diferenciada. Nunca uma reforma fiscal que reduza o peso dos impostos indiretos foi tão importante.

Por último temos uma crise política intermitente e profunda na sociedade brasileira, fruto de um executivo que em seu estilo de governar produz o caos e a dissimulação a cada semana. Produz crises a partir de desavenças criadas entre outros poderes da República. Que, também, tem tido atitudes negligentes, passando a mão na cabeça.

A lógica de governar para apoiadores fanáticos, de se fazer de vítima, de se desenhar como o patriota salvador da pátria, vai produzindo no imaginário dos fanáticos, novos demônios a serem exorcizados. Tudo dentro de uma lógica de ruptura democrática e de uma condução autoritária dos destinos da Nação. O isolamento crescente vai tornando o presidente refém das poucas forças que ainda lhe dão apoio, entre elas as Forças Armadas que ocupam muitas das posições importantes dentro da burocracia estatal federal. Até quando? Este é um assunto para outro artigo.

 

*PAULO ROBERTO BRETAS /ECONOMISTA E PROFESSOR DE HISTÓRIA ECONÔMICA.