Tenho o costume de ilustrar minhas palestras, sobre a Insegurança, abordando alguns episódios vivenciados ao longo de 30 (anos) de serviço na Força Pública de MG, no desempenho de atividades vinculadas à garantia da ordem social.

Em um deles, os protagonistas eram 03 (três) crianças (até 12 anos, segundo o ECA), surfando em um ônibus (na posição clássica do surfista sobre uma prancha), que circulava no centro da capital mineira. Interceptamos o veículo e pedimos aos garotos que descessem e viessem até nossa presença, ao que se seguiram perguntas e respostas a um deles. Seu nome? Pedro (fictício). Idade? 11 (onze) anos. Tem pai e mãe? Sim, senhor. O que fazem? Meu pai tá na cadeia e minha mãe trabalha de doméstica, o dia inteiro. Você estuda? De manhã, na 3ª série. O que você faz à tarde? A gente anda por aí. E por que você não fica em casa? Porque o barraco é pequeno e quente. E por que você não brinca com outros meninos, seus vizinhos? Porque eles não ficam lá. Por quê? Porque no morro os becos são muito estreitos. Lá não tem uma área de lazer? Não, senhor. Nem um campinho, uma quadra? Tem nada não, senhor.

O ímpeto, que consegui segurar, foi de falar para aquele menino: “Vai em frente, mísera criança! Vai surfar, até alcançar terra firme”. Não o fiz porque a razão me impeliu a cumprir o dever de encaminhá-los à FEBEM, à época um órgão excelente, muito efetivo e que ajudou a tirar muitos menores das ruas, preparando-os para viver em sociedade. Além do mais, certamente, estávamos diante de um caso típico de distopia estatal (anômalo funcionamento de órgãos estatais), responsável pelo surgimento de famílias desestruturadas e de alto índice de desigualdade social. Esta distopia é que dá origem ao fenômeno da marginalização (à margem de direitos sociais), que caracteriza um dos cinco tipos de ameaças ao corpo social: a exclusão social. Ameaça que, durante algum tempo, foi considerada uma vulnerabilidade socioeconômica, mas, hoje, vigora o entendimento de que se trata de uma vulnerabilidade sociopolítica, em razão de falhas na administração e na gestão públicas, gerando crises de moradia, seguridade, fome, miséria, educação, transporte, saneamento, desemprego, desocupação, remuneração, concentração de renda. Enfim, estávamos diante de um fato que envolvia marginalizados, isto é, uma ocorrência de assistência social e, não, uma ocorrência policial.

Não sei o destino daquelas crianças e se se transformaram em cidadãos plenos, isto é, se estão exercendo seus direitos sociais e praticando seus deveres sociais, ou se são cidadãos parciais. E, sob minha óptica, a incompletude da cidadania se processa quando o indivíduo, por falta de opção, engrossa a amplitude da marginalização, quando ali é lançado por falha do Estado no provimento da proteção social (distopia social). Ao lado da marginalização, que dá origem ao marginalizado, separada por uma linha tênue, está a marginalidade (à margem de deveres sociais), que dá origem ao marginal. O marginal é um marginalizado que foi cooptado pelo crime ou é um indivíduo, nem sempre marginalizado, mas que tem deficiência ética, que não obedece a ordem social, que não respeita valores sociais. Portanto, é muito importante visualizar e entender que nem todo marginalizado é marginal e nem todo marginal é marginalizado.

Voltando à realidade fática, constata-se estar aumentando, consideravelmente, a presença de menores em crimes (mais uma das ameaças ao corpo social), seja como autores, seja como vítimas, em razão de ser uma fase da vida (criança e adolescente) onde ocorre, com mais intensidade, a transposição de marginalizado para marginal. E aí, por certo, uma das mais fortes causas de violência em nosso país. Considerando que alguns leitores podem não ter lido nossa manifestação a esse respeito, ratificamos o entendimento, sintético, de que devem ser priorizados os educadores e os assistentes sociais. Se, antes, os timoneiros na formação do caráter da criança eram o pai e a mãe, agora, com a nova formatação familiar, nova estrutura, novos valores (alguns, péssimos), esses profissionais são os mais adequados para assumir essa tarefa, coadjuvados pelos relevantes serviços de religiosos.

Enfim, é importante o trabalho de órgãos policiais, que enfrentam, prendem e conduzem, às barras da Justiça, os marginais. Todavia, é extremamente importante o trabalho de formação de cidadãos. Há países em que a exclusão social, a marginalização é altíssima, mas o índice de criminalidade (a produção dos marginais) é baixíssimo, porque o culto, o respeito a valores sociais, a obediência à ordem social, o cumprimento de regras sociais são uma prática corrente. No Brasil, programas sociais estão reduzindo a exclusão social, isto é, a marginalização está em queda, enquanto a marginalidade está em patamares socialmente intoleráveis, porque não temos políticas públicas efetivas para apropriada formação de cidadãos, nem para impedir que algumas crianças cresçam com deficiência de caráter, características que facilitam a cooptação.

(*) Coronel Reformado da PMMG

Ex-Comandante da Região Metropolitana de BH