Juliana (Grace Passô) deixa Itaúna, no interior de Minas Gerais, para tentar vida nova na região metropolitana de Belo Horizonte. Em Contagem, ela consegue emprego na equipe de combate a endemias e se aproxima, primeiramente, do experiente Russão (Russo Apr), designado a ajudá-la. Aos poucos, a novata estreita suas relações com os demais funcionários, compartilhando sentimentos e ouvindo confidências. Enquanto se adapta ao novo cotidiano, a protagonista lida com a morte recente da mãe e uma crise no casamento – o marido ficou em Itaúna e deve chegar a Contagem em breve.

A trama de Temporada, novo filme de André Novais Oliveira, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (17), opta por tom naturalista ao mostrar uma protagonista enfrentando intenso processo de transformações. Com atores de alto nível, o longa não necessita de conflitos e dramas lacrimejantes para gerar rápida empatia e cativar o espectador.

A fórmula tem conquistado o mundo: em Belfort, na França, Temporada foi premiado pelo júri popular do Festival Entrevues; no Festival de Torino, na Itália, Grace Passô foi eleita a melhor atriz. Por aqui, fez bonito no Festival de Brasília, faturando os troféus de melhor filme, atriz, ator coadjuvante (para Russo Apr), fotografia (Wilssa Esser) e direção de arte (Diogo Hayashi).

PERTENCIMENTO Com Temporada, André Novais Oliveira lança um olhar para o local onde cresceu e vive. “Estão surgindo muitas produções de Contagem e outras também periféricas. Muitos desses novos retratos são feitos por diretores que nasceram ou viveram nesses locais, o que lhes permite visões diferentes e interessantes sobre aquela localidade”, observa o cineasta.

Em 2007, ele trabalhou no combate às endemias no Bairro Amazonas, em Contagem, que serviu de locação para as filmagens. Assim como os personagens de seu longa, o cineasta batia de porta em porta, adentrando na intimidade dos moradores da região. “Foi o primeiro passo que me permitiu pensar, mais à frente, uma história sobre este trabalho de entrar na casa das pessoas, conhecê-las mais a fundo e conhecer melhor, também, a própria cidade”, conta o diretor.

À premissa o diretor somou a história de uma mulher em fase de transições. Entre elas, a morte da mãe, relatada por Juliana em uma cena tocante. O drama seria compartilhado pelo diretor meses após a gravação. Temporada é dedicado a Maria José Novais Oliveira, a dona Zezé, mãe de André e presença constante em seus filmes. “Acredito que a cena surgiu no roteiro a partir de um medo inconsciente. Ela já enfrentava problemas de saúde e havia sofrido um derrame”, conta Novais Oliveira.

A relação com sua família já havia sido explorada no elogiado Ela volta na quinta (2016), em que mostrou a separação de dona Zezé e Norberto, pai de André, levando esses personagens reais para a dramatização. Em Temporada, o diretor volta a mesclar ficção e realidade. São muitas as participações de tipos reais, destituídos de personagens – a exemplo de dona Zezé, que surge nos minutos finais.

RUSSO O longa traça um belo retrato de Contagem. Em uma sequência, que transcorre na laje de uma residência, vemos uma panorâmica da região, enquanto um morador comenta sobre o crescimento populacional e o dia a dia na localidade. Os personagens circulam em ambientes típicos dos bairros de classe média e baixa na Região Metropolitana de BH. Estabelecimentos como Dimas do Espeto e Hot Dog da Tia Vilma fazem parte da rotina de Juliana e seus colegas.

A homenagem ao município é mais evidente na interpretação do novato Russo Apr, que emprestou seu nome ao simpático personagem. Agitador cultural, o ator comanda o coletivo Terra Firme, em Ibirité, em que oferece a jovens carentes oficinas de cinema, fotografia, poesia e rap. Nascido em Nanuque, no interior do estado, ele vive entre a Região Oeste de BH e a cidade de Ibirité, onde cresceu. “Nunca fiz teatro e, nas experiências com filmes, sempre fiquei na direção. Já conheço cinema há pelo menos 10 anos, mas nunca tinha atuado em um longa de grande produção como este”, diz.

Russo é velho amigo do diretor Maurílio Martins, que integra a produtora Filmes de Plástico – responsável por Temporada. Desde quando se conheceram, há 17 anos, eles desejavam trabalhar juntos em um longa-metragem. “Maurílio é uma referência para o favelado que sonha em fazer cinema, o que, para nós, nunca foi algo real. Víamos como coisa de gente rica”, afirma Russo. O encontro finalmente ocorreu em No coração do mundo, dirigido por Maurílio e Gabriel Martins, ainda inédito – a estreia será na mostra competitiva do Festival de Roterdã, neste mês.

Durante os ensaios, o ator iniciante conheceu André Novais, que o convidou para integrar o elenco de Temporada. “Abracei este personagem, que tem tudo a ver comigo, e tive uma experiência artística e humana riquíssima. O filme fala da minha realidade e dialoga comigo mesmo. Claro que existe ali uma atuação, mas não mudei minha forma de levar a vida para interpretá-lo.”

Vitrine Filmes/DivulgaçãoFilme traça um belo retrato da cidade de Contagem (foto: Vitrine Filmes/Divulgação)

PATERNIDADE “Quando li o roteiro, parecia que tinha sido escrito para mim”, brinca Russo. O dilema de seu personagem, que descobre ter um filho pequeno, já foi vivido pelo ator há 20 anos. À época, desempregado, precisou trabalhar como porteiro para sustentar a filha, hoje estudante de direito. A própria vivência e o convívio com rapazes que precisam lidar com a paternidade ajudaram o ator no desenvolvimento de seu personagem.

“Tenho muitos amigos que também foram pais jovens e, como trabalho com um projeto social, conheço muitos adolescentes que vivem essa realidade. Acompanho de perto o cotidiano de quem ganha pouco, pega vários bicos para pagar pensão e sustentar uma família que já nasce desestruturada, sem perspectivas.”

O ator comemora ao ver a periferia representada na telona e a oportunidade que os artistas da região estão tendo de mostrar o seu talento. “Temporada traz o cuidado e a preocupação de transformar a periferia de Contagem em personagem principal, enquanto a maioria dos filmes produzidos aqui mostra o cotidiano do Centro de BH. Os caras da Filmes de Plástico ajudam a descentralizar o cenário, com outras perspectivas e olhares, o que enriquece o cinema daqui e dá visibilidade a personagens invisíveis. Este trabalho modifica e integra uma comunidade, até então marginalizada.”

Três perguntas para...

GRACE PASSÔ
atriz


Juliana, sua personagem, passa por diversas transformações, que ficam evidentes na metade da história, com a mudança do cabelo da personagem. Essa mudança pode ser considerada uma alegoria do arco dramático da personagem?

Não considero uma alegoria. Diria que é um símbolo, algo mais forte. A mudança de cabelo é um dos símbolos dessa transformação, assim como as mudanças no figurino e no comportamento. Esta é a história de uma mulher no momento em que vai construindo sua independência e liberdade. Ela joga luz a esse momento em que muda de cidade e de relações afetivas. No trabalho, há uma dinâmica que a obriga a encontrar muitas pessoas e a lidar com elas. Com esses encontros, vai transformando e modificando seu olhar sobre o mundo e sobre si mesma.

Temporada apresenta o cotidiano na Região Metropolitana de BH, desde os cenários até o sotaque dos personagens. A identificação com os espectadores daqui tende a ser maior que com outras plateias?

Quem é de Minas conseguirá ter leituras e perspectivas diferenciadas, que talvez o público de outros lugares não tenha, já que se trata da nossa realidade. Os espectadores do estado certamente farão uma leitura “de dentro”, por todas as características e os elementos mineiros presentes no filme.

O longa também tem feito sucesso no exterior, com plateias distantes da realidade retratada. A que você atribui isso?
Temporada é feito com signos que pertencem a um lugar, mas estão todos dentro de uma poética. A arte tem essa capacidade. Por meio de uma criação poética, é possível falar além de onde viemos. O filme é, sobretudo, uma obra de arte, que relaciona tais elementos, mas não fala só para eles. Fala a quem quer ouvir.