A tela do cinema ainda está completamente escura, mas acordes sombrios crescentes misturados a ruídos difíceis de descrever tomam conta da sessão por um tempo longo que parece não ter fim. Finalmente, na primeira imagem, uma família termina de brincar à beira do rio em um dia ensolarado, seguindo para sua enorme casa de campo, com jardim e piscina igualmente impecáveis. A esposa recebe algumas roupas que chegam de fora e, enquanto tenta manter tudo em ordem, as crianças brincam e o marido sai para trabalhar literalmente do outro lado do muro – como comandante de Auschwitz, o mais conhecido campo de concentração do nazismo, que levou a mais de 1,3 milhão de mortos durante a Segunda Guerra. 

Não é por menos, então, que Zona de interesse, em cartaz e indicado a cinco Oscars, utiliza seus primeiros minutos para fazer o espectador encarar a escuridão total, como se o preparasse para um estado de paralisia diante do mal. Essa maldade, porém, se manifesta no mais mundano dos gestos, na mais banal das preocupações, no mais inocente dos diálogos. A família do personagem real Rudolf Höss tem, evidentemente, total ciência do que está acontecendo a apenas uma parede cinza de distância, mas aquilo não provoca incômodo algum, pelo contrário: às vezes, os sons horripilantes de tiros, estrondos e gritos viram até motivo de diversão para os pequenos.

Dirigido por Jonathan Glazer (cujo trabalho mais conhecido é a ficção científica existencial Sob a pele) e adaptado do livro homônimo de 2014 escrito de Martin Amis, Zona de interesse é uma experiência de observação que exige paciência e desapego de convenções narrativas/dramáticas clássicas. As câmeras do diretor se assemelham às de um reality-show: quase sempre estáticas, em planos abertos, simétricos e distante dos personagens. A imagem é cristalina e desprovida de qualquer estilização ou humanização, propondo uma visão clínica e gélida sobre a brutalidade escondida na pureza desse cenário. 

Frequentemente, o complexo trabalho de som (para o qual o espectador já possui imagens igualmente definidas na cabeça) volta a assombrar, mas Glazer jamais atravessa esse limite do muro que separa Aschwitz do jardim da família Höss. A estratégia do contraste entre aquilo que é mostrado e o que é apenas sugerido não está simplesmente em revelar a indiferença perturbadora de pessoas ‘comuns’ perante o horror absoluto, mas em desafiar o público a identificar por conta própria as camadas do mal que permeiam essa rotina.

Esse mal parece tão inerente a cada movimentação do filme que, num dado momento, o comandante nazista verbaliza a única coisa que ele consegue pensar quando vê uma sala fechada cheia de pessoas, ainda que sejam seus aliados. Já a esposa representa algo ainda mais cruel e identificável: tal qual uma dona de casa zelosa, tem todo o cuidado do mundo para com seus filhos e seu cachorro, mas completa naturalidade sobre o genocídio que cerca seus ouvidos, chegando até a ameaçar uma de suas funcionárias a ‘passar para o lado de lá’.

Radical e profundamente desconfortável, o longa coloca a imaginação para preencher as lacunas – sabendo bem que nenhuma construção visual se equipara àquela produzida pela mente humana – e, através da frieza contemplativa desse olhar, força a plateia a confrontar sua ideia de monstruosidade. Talvez a única coisa tão assustadora quanto imaginar pessoas ‘normais’ aderindo ao mais cruel dos atos seja lembrar que isso de fato aconteceu. E, em Zona de interesse, essa ideia ganha relação inequívoca com o presente.