28ª edição do festival ibero-americano teve início no sábado, com homenagem ao comediante Renato Aragão
Todo domingo à noite, a família inteira sentava em frente à TV e ria dos Trapalhões. Uma tradição que marcou uma época – e uma descrição perfeita de um tempo, e um país, que não existe mais. Foi isso que Fábio Porchat, convidado pelo 28º Cine Ceará para entregar o troféu Mucuripe a Renato Aragão, grande homenageado do festival, lembrou ao reverenciar o ídolo na noite de abertura do evento, no sábado – num encontro da nova com a velha (e eterna) geração. “Em tempos como os atuais, quando as pessoas estão brigando umas contra as outras na política, minha lembrança dos Trapalhões é estar sentado na sala com meus pais, avós, a família toda reunida. Não era bom para um ou para dois, era para todo mundo”, recordou.
Para Renato, porém, as lembranças despertadas pela noite foram um pouco mais longe. Do alto dos 83 anos, o comediante – que recordou ter estado na inauguração do Cine São Luiz, com uma sessão de “Anastácia, a Princesa Esquecida”, em 1958 – voltou até 1964, quando deixou o Ceará rumo ao Rio, em busca de uma carreira artística. “Já recebi muitas homenagens na minha vida, mas esta significa mais para mim porque é da minha terra. Foi aqui que eu comecei e foi daqui que eu saí”, afirmou, emocionado.
E saiu, abandonando o programa de comédia ‘Vídeo Alegre’, que fazia na TV local, por um único motivo. “Eu disse ‘eu quero fazer cinema, minha vida é cinema’. Tudo que eu sei Oscarito me ensinou com os filmes dele”, reconhece.
Se Oscarito era um ídolo difícil, quase impossível, de fazer jus, Renato cumpriu seu objetivo. O ator, comediante, roteirista, diretor, produtor, apresentador e filantropo não só se tornou um dos maiores ícones da TV brasileira, mas também um dos maiores fenômenos do cinema nacional.
Em 53 anos de carreira, foram 50 filmes, quase todos enormes sucessos de público – com alguns deles, como “Os Saltimbancos Trapalhões”, “Os Trapalhões nas Minas do Rei Salomão” e “Os Trapalhões na Serra Pelada” ainda entre as maiores bilheterias da produção brasileira. “Estou no quinquagésimo filme. E vou fazer agora o próximo, o 51, que já está no prelo, pronto para ser filmado”, avisou o showman, que sofreu um infarto em 2014.
O mais impressionante disso, como o comediante ressaltou na breve coletiva que concedeu à imprensa antes da cerimônia, é que ele e seus parceiros – os antológicos Dedé Santana, Mussum e Zacarias – fizeram isso num contexto muito diferente do atual. A filmografia dos Trapalhões foi feita num tempo em que não existia a atual avalanche de recursos e incentivos do cinema nacional. E foi a grande responsável por manter a conexão do público com a produção brasileira, quando ela lutava para não morrer. “Eu nunca desisti. Às vezes, fazia cinema do meu bolso. Não tinha incentivo, não tinha nada. Mas recuperava. Se a ideia fosse boa, eu já ia na certeza de que ia dar certo”, recorda.
E se, em 1964, Renato teve que sair do Ceará para realizar o sonho de fazer cinema, na noite de sábado, ele deve ter ficado orgulhoso de seu Estado. A abertura contou ainda com a estreia mundial do longa “O Barco”, produção de visual estonteante dirigida pelo cearense Petrus Cariry. E mesmo que reconheça não conseguir acompanhar a cena atual do humor local, o comediante celebra um conterrâneo, claro herdeiro de seu trabalho na tela grande. “Eu vi ‘Cine Holliúdy’. É muito bom aquele cara (Halder Gomes)”, apontou.
A grande diferença é que, hoje, Halder não precisa sair do Ceará para conquistar o público do país todo com sua comédia. E ao retornar ao Estado para a homenagem do festival, Renato foi tomado por uma nostalgia e um certo lamento pelo abandono de casa. “N’Os Sertões’, Euclides da Cunha disse que ‘o nordestino é, antes de tudo, um forte’. Eu fiquei no antes de tudo, não consegui ser um forte”, filosofou, sobre a saída para o sul do país.
Mas de volta a Fortaleza, o eterno Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo afirmou que sua vontade era poder ficar na cidade, onde se formou em Direito e tem amigos até hoje – lembrando de uma piada que ouviu logo ao chegar no Rio de Janeiro, em 1964. “Um sujeito me disse ‘me perguntaram se tem mais valor o Rio ou o Ceará. Eu respondi que tem mais valor o Ceará. Porque o Ceará tem rio, mas o Rio não tem Ceará’”, declarou. O público riu – aquela risada inocente, sincera e espontânea que só os Trapalhões eram capazes de causar.