O medo do fim persegue a humanidade. Desde o livro Apocalipse da Bíblia, passando por games e quadrinhos até produções massivas anuais de séries e cinema hollywoodiano, somos fascinados por representações do fim do mundo. “Todo nós temos uma doença: a doença de sermos finitos. A morte é a base de todo horror”, diz um dos mestres definitivos do terror, David Cronenberg. Atualmente, o receio da finitude ganha força, além dos desastres ambientais, por meio da epidemia mundial do novo coronavírus aliada à crise financeira mundial. Tem causado pânico e sensação de catástrofes nas pessoas, levando inclusive ao adiamento de estreias no cinema - incluindo o apocalíptico Um lugar silencioso 2. Imagens de ruas desertas e pessoas mascaradas têm viralizado em redes sociais, voltando a reiterar uma série de narrativas presentes na nossa cultura, muito através do cinema e sua capacidade de refletir os medos de cada época.

A explosão definitiva de filmes de fim do mundo na cinematografia mundial certamente foi nos anos 1950. Mas, provavelmente, o primeiro filme apocalíptico foi o dinamarquês O fim do mundo (1916), de August Blom, que explora a passagem de um cometa pela terra, causando pânico, agitação social e destruição do planeta. Na época, o filme atraiu um grande público por conta dos efeitos visuais impressionantes, além de contextos como a passagem do cometa Halley, seis anos antes, além das turbulências e das incertezas da Primeira Guerra Mundial.


Já nos anos 1950 e 1960, essa finitude da condição humana se relaciona muito aos perigos da ciência com suas invenções fantásticas e os horrores do pós-guerra. As ameaças cósmicas e espaciais estavam em voga, dentro do contexto da corrida espacial entre a antiga União Soviética e os Estados Unidos, que começavam a explorar o desconhecido. Filmes como Vampiros de alma(1956), A guerra dos mundos (1953) e Vinte milhões de léguas a Marte (1956) viam no espaço um ambiente de acirramento da disputa “nós versus os outros”, muito também criado a partir do olhar norte-americano para a cortina de ferro soviética, que representava todo um contexto de desconhecimento da vida no país socialista. Não à toa, no mesmo período pós-guerra, o Japão cria seu próprio monstro a partir da radiação: o Godzilla, um reflexo do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki.
 
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Noite dos mortos-vivos (1968), de George A. Romero, que antes de tudo é uma grande reflexão sobre o modelo de sociedade estadunidense. (Foto: Divulgação)
 

Os anos 1960 também marcaram o surgimento de um clássico, precursor de um gênero: Noite dos mortos-vivos (1968), de George A. Romero, que antes de tudo é uma grande reflexão sobre o modelo de sociedade estadunidense. O clima patogênico e infeccioso que dá tom ao apocalipse zumbi se sustenta, muitas vezes, na paranoia do contágio e da vida em sociedade cada vez mais “doentia”.


A paranoia nuclear foi a tônica dos anos 1970. Mas nos anos 1980, um importante agente do caos no cinema foi John Carpenter, apresentando uma visão mais “anárquica” e anticontrole dos corpos. O cinema de Carpenter deslocou o medo do anticomunismo e do “outro” para o fim através das ambições, pensando a paranoia do isolamento social na celebrada “trilogia do apocalipse”, com Príncipe das sombras (1987), À beira da loucura (1994) e O enigma de outro mundo (1982).


Um ponto de virada na história dos Estados Unidos que reverbera até hoje na cultura pop são as imagens do 11 de Setembro, evento de magnitude assombrosa. A partir daí, a ameaça do outro volta a aterrorizar o imaginário norte-americano, dessa vez sendo os terroristas as principais figuras de austeridade. Com Steven Spielberg, essa ameaça - que anteriormente teve força nos anos 1950 e 1960, dentro da Guerra Fria - volta ao cinema através do sucesso de Guerra dos mundos (2005).
 

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Mesmo baseada em uma história real, a produção da HBO afeta nossa relação com o visual de pessoas com máscara, o caos social acerca de uma ameaça invisível e o medo do próprio contato com outro. (Foto: Divulgação)
 

AS IMAGENS DE FIM DO MUNDO


Para o pesquisador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Alan Campos, esses “fins de mundo” plurais fazem parte da própria geração de contextos históricos. “O grande assombro da nossa geração é que temos acesso a muitas narrativas que em outros tempos não teríamos. Temos uma consciência histórica mais fecunda, como em relação aos genocídios ameríndios na América Latina. Então, conseguimos localizar essas narrativas de invasões extraterrestres na nossa história, por exemplo”, explica.


O estado de alerta atual para o coronavírus se relaciona com os símbolos e repertórios visuais de outros tempos. “O imaginário de pandemia vem muito de um medo do invisível. O que vivemos agora com o coronavírus remete muito à peste negra, por exemplo, uma catástrofe que as pessoas não sabiam como parar. É muito voltado para a falta de controle em torno do mundo que habitamos. Um clima de paranoia constante que, de certa forma, é sobre uma estrutura biológica capaz de superar o homem”, explica. Não à toa, uma das séries mais comentadas e premiadas do ano passado foi Chernobyl. Mesmo baseada em uma história real, a produção da HBO afeta nossa relação com o visual de pessoas com máscara, o caos social acerca de uma ameaça invisível e o medo do próprio contato com outro.


Ainda segundo Alan Campos, é nesse repertório de medo que achamos uma das fundações da sociedade ocidental, que é o pensamento cristão, pautado em uma história com começo, meio e fim. E esse fim é justamente o fim da história. Fim que é chancelado pelas nossas próprias escolhas erradas, nossos pecados. Essas narrativas não fecundam apenas nossa imaginação, mas também nos levam diretamente para fraturas históricas de eventos que nos constituem como cultura, que nos defronta com essas recorrências. E que insistem em nos fazer acreditar que o momento que vivemos tem roteiro de cinema.