Um estacionamento de caminhões repleto de símbolos religiosos, música sertaneja ecoada dos sons automotivos, refeições coletivas, chuveiros improvisados e um discurso confuso. Em meio às reivindicações por melhores condições de trabalho, um caminhoneiro grita: "Queremos democracia!" O pedido é seguido por uma sugestão: "Intervenção militar já!"

O cenário retrata a instabilidade que tomou conta do Brasil em maio de 2018 durante a greve dos caminhoneiros, colocando em risco o abastecimento do país, além de tensionar o governo Michel Temer e provocar a renúncia do então presidente da Petrobras, Pedro Parente. Nome frequente nas faixas de bloqueio das vias, Jair Bolsonaro foi eleito presidente cinco meses depois.
 
A história narrada está no documentário Bloqueio, co-dirigido por Victória Álvares e Quentin Delaroche. Produzido pela Ponte Produtoras, o filme estreou no Festival de Brasília de Cinema Brasileiro, na Competição Oficial 2018. No Recife, a primeira exibição aconteceu na última quinta-feira e continuará com sessões nesta terça e quarta, às 18h, no Cinema São Luiz. 
 
 
Com os primeiros sinais da crise dos combustíveis, os cineastas partiram de carro até um posto de gasolina situado em uma rodovia em Seropédica, no Rio de Janeiro, um dos 350 bloqueios físicos, e acompanharam a rotina dos caminhoneiros desde o início eufórico da paralisação até o encerramento pouco resolutivo.
 
"Sentimos que havia distância, havia não ditos e não tínhamos ideia do que poderia vir a acontecer. Neste processo, conhecemos homens e mulheres que se sentiam absolutamente desprezados por seus representantes políticos, uma sociedade enfurecida, que não conseguia mais dialogar e sentia que não tinha grande coisa a perder", diz a carta dos diretores.
 
De acordo com eles, Bloqueio surge de um desejo de escuta, mas também de uma urgência em compartilhar os momentos vividos com aqueles trabalhadores precarizados. Aos poucos, através das lentes de Delaroche e da sonoplastia guiada por Victória, vamos conhecendo a dinâmica do acampamento improvisado na beira da estrada. As cenas vão ganhando ritmo, produzindo a sensação de um espectador participante.
 
Como um registro histórico, o documentário ilustra o movimento a partir de um panorama detalhado das intenções dos trabalhadores, apresentando uma pluralidade de comportamentos: coro por intervenção militar surgiu em meio a uma série de pautas da categoria uns esperançosos, outros indignados com a política brasileira, famílias apoiando e a grande maioria perdida. Durante toda a captação, os diretores se concentram em um olhar de dentro para fora, evitando qualquer tipo de julgamento ou tensionamento político ao interagir com os caminhoneiros.
 
"Tem que ter respeito. É a gente que move o país”, brada um caminhoneiro. Neste momento, trabalhadores com pouca vivência de protesto se dão conta do poder que têm diante dos ref lexos da paralisação e, em menos de sete dias, transformam as pautas que motivaram o movimento, como a queda do preço dos combustíveis e a redução dos impostos, em secundárias, fazendo surgir cada vez mais vozes pedindo uma intervenção militar.
 
Intencional ou não, o grito desesperado de manifestantes, que a princípio não sabiam exatamente o que buscavam, resumiu as queixas em soluções imediatas. Em uma das cenas, a câmera de Delaroche flagra um caminhoneiro sendo ignorado por dois soldados. "Olha como eles tratam a gente", dialoga com o diretor. Ao ser questionado pelo discurso que endossam nas faixas e gritos de guerra, responde: "Nós não temos alternativa. Não queremos ditadura não, só precisamos colocar ordem no Brasil e pronto".
 
Mas quando os tanques de guerra chegam ordenadamente até o posto de gasolina, os caminhoneiros questionam: "Será que eles estão aqui para tirar ou para proteger a gente?" A pergunta confirma o caráter confuso do movimento. O exército enviado pelo governo federal atua na tentativa de dissolver a greve, ao mesmo tempo que diz proteger os manifestantes, ato comprovado pela ausência de violência e tensionamento por parte de ambos os lados durante toda a greve. Mesmo resistindo após aplicação de multas, pouco a pouco os caminhoneiros começam a deixar o posto. 
 
A expectativa de um golpe militar, pedido por parte dos trabalhadores, entretanto, caiu por terra. "Vimos ali todos os ingredientes que estariam presentes durante a campanha de Bolsonaro: onipresença da Igreja Evangélica, incapacidade da esquerda em dialogar com a base trabalhadora, trabalhadores raivosos com a mídia e uma nostalgia de uma ordem militar", encerra a carta. O movimento se espalhou pelo país, de forma ingênua e contraditória, e teve como resultado um cenário ambíguo que se estende até os dias atuais, onde o ódio é confundido com a liberdade.