CRÍTICA

Um dos muitos fenômenos curiosos com relação ao lançamento de Barbie, já em cartaz, é o fato de o longa ter se transformado em um dos maiores acontecimentos cinematográficos recentes no mesmo momento de culminação da crise em Hollywood, com a greve dos atores e roteiristas. Encurralada há anos devido ao avanço do streaming e ao desastre da pandemia, a indústria precisava de um filme-evento que mobilizasse o público para além de nichos e gerações. E, sim, ela achou.

Dirigido por Greta Gerwig em seu terceiro trabalho-solo (os anteriores foram Lady Bird e Adoráveis mulheres, multi-indicados ao Oscar) e estrelado/produzido por Margot Robbie – em mais uma
atuação formidável –, Barbie demorou cerca de 14 anos para ganhar vida, passando por troca de estúdios e incertezas sobre a abordagem. Sua cara, no entanto, é a mais contemporânea possível. 

O simples fato da diretora e seu co-roteirista Noah Baumbach, ambos vindos do cinema independente autoral, estarem no comando criativo demonstra a tentativa da Mattel e da Warner de apresentar algo que pareça novo e ‘conceitual’ (parte de todo o fenômeno tem a ver também com a curiosidade sobre o enredo e o tratamento do conteúdo).

Robbie interpreta literalmente a ‘Barbie-padrão’, que mora em Barbielândia com as inúmeras outras Barbies (e Kens), e tem na sua casa dos sonhos uma vida interminavelmente perfeita. Tudo muda quando surgem em sua mente pensamentos de finitude, que contaminam cada coisade sua rotina ea forçam a buscar quem está brincando com ela no mundo real. Com a ajuda do Ken-padrão (Ryan Gosling), ela se depara com uma realidade oposta ao que sempre conheceu.

A título de registro, Barbie não é exatamente destinado ao público infantil. Ainda que, superficialmente, possua suficientes elementos para agradar crianças, boa parte de suas proposições e referências estão fora do alcance delas, sobretudo no tocante a papéis de gênero na sociedade patriarcal, contextos de criação de um produto industrial e o legado histórico da boneca na formação das meninas. Naturalmente ciente de que não há como evitar a ida em peso de vários pequenos ao cinema, a diretora e os produtores asseguraram um didatismo que pode incomodar os que esperavam maior ousadia.

A ambição de construir uma narrativa com apelo tão abrangente é admirável e o rico design de produção, banhado de rosa, se torna um parque de diversões para o filme explorar múltiplas possibilidades cômicas desse universo e tecer comentários afiados sobre gêneros. Essa opção pelas piadas ininterruptas inevitavelmente faz de Barbie praticamente uma sucessão de memes, o que não vira um problema em absoluto visto que a existência do filme por si só já uma grande brincadeira.

Inegável que a sátira está submissa aos limites da própria Mattel, que se coloca num papel de ridículo e de autocrítica que é, em última instância, ilusório: a empresa, afinal, vailucrar intensamente a partir do longa. Mas isso não é exclusividade de Barbie e, sim, a lógica de qualquer projeto de grande estúdio.

O bonito é notar como a visão de Gerwig, experiente em tramas de amadurecimento feminino e construções delicadas de afeto, consegue esticar esses limites e oferecer uma experiência subversiva e surpreendente a seu modo, questionando a importância e influência de que uma boneca é capaz e sua adequação/inadequação ao tempo. Por detrás dessa deliberada plasticidade, o filme revela sentimentos humanos dos mais puros e singelos sobre sentir-se cada vez mais viva – e celebra com colorido e diversidade as infinitas escolhas que meninas e mulheres podem fazer sobre elas mesmas.

 

Fonte:diariodepernambuco.com.br