CINEMA NACIONAL


Neste domingo (22), completam-se 40 anos da partida do cineasta baiano Glauber Rocha, um dos maiores nomes da arte brasileira. Nas milhares e milhares de vezes em que é citado, “furacão”, “vulcão”, “revolucionário”, “dinâmico” são adjetivos comuns atrelados à sua figura. Todos representando condições físicas ou sociais de movimentação, de sair de um canto e chegar em outro, carregando transformações de dentro pra fora e vice-versa. Chega a ser óbvio como isso  retrata de uma condição clara na trajetória estética, política e pessoal - que se confundem e tornam seu cinema único por isso - de Rocha, na qual certezas podem ser esbravejadas com firmeza da mesma forma como podem ser abandonadas. Mas o amor pelo movimento segue intacto.


A história Glauber no cinema nacional começa ainda nos anos 1950, quando realiza seu primeiro curta, O Pátio e viaja ao Rio de Janeiro, com apenas 18 anos. Por lá, acaba trabalhando em uma diária na gravação de Rio, Zona Norte, do mestre Nelson Pereira dos Santos, que se tornaria uma espécie de mentor do movimento Cinema Novo que Glauber inauguraria ao lado de amigos. Amigos esses que conheceu nessa primeira viagem, em especial Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade, unidos pelos bares, festas e discussões acaloradas sobre cinema, em especial seus ódios e amores. 


Era um momento em que irrompiam e continuavam rupturas nas formas de se fazer cinema pelo mundo, cada uma agradando diferentes membros do grupo que formaria o Cinema Novo, que ainda contaria com nomes como Leon Hirszman, Cacá Diegues, Gustavo Dahl e o próprio Nelson Pereira. Alguns eram mais afeitos ao neorrealismo italiano, outros ao cinema de Ingmar Bergman e Fellini. Já Glauber, nesse primeiro momento, se definia como "eisensteiniano", admirador do trabalho do cineasta e teórico soviético Serguei Eisenstein, postura que disse abandonar já nos trabalhos de seu primeiro longa, Barravento, cuja direção assumiu após a desistência de Luiz Paulino dos Santos. Protagonizado por um jovem Antônio Pitanga, o filme sobre uma colônia de pescadores do litoral baiano começava a trazer uma estilística que Rocha amadureceria com o passar dos anos.


Aliás, assistir Barravento e A Idade da Terra, seu último longa, em seguida, é um exercício interessante para a percepção ao mesmo tempo de mudanças radicais em termos de estilo e política, mas também a preservação de uma certa energia estética. Se em ambos, a cultura popular é filmada sob uma ótica de encantamento e fascínio, tematicamente, a representação em um é vista como um ponto de alienação do povo e no outro como um signo de catarse e exasperação, como aponta o professor Fernão Pessoa Ramos em Nova História do Cinema Brasileiro. É uma postura que permite ter em sua obra textos como Estética da Fome e Eztetyka do Sonho se confrontando em um curto espaço de tempo, tendo como base de discussão a mesma situação colonial e terceiro mundista, mas sob os prismas da violência em um e da negação da lógica no outro.


Tal postura glauberiana permite também a existência de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme que o lançou internacionalmente, e o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro compartilharem um mesmo personagem, o Antônio das Mortes vivido por Maurício do Valle, mas com jornadas e morais distintas em mundos distintos, entre o preto e branco de um drama mais seco no primeiro e as cores e batuques do último. Talvez esse seja um dos maiores legados do cineasta baiano, observar como uma arte que tem o movimento como um de seus pilares é o terreno perfeito para se abandonar dicotomias e estar aberta às transformações, mas sem precisar se abandonar ideais de um mundo mais justo.

 
CAÇANDO CORISCO
 
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Othon Bastos viveu Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol após ser caçado

(REPRODUÇÃO)
 
 
Deus e o Diabo na Terra do Sol, longa que coloca Glauber em prestígio internacional, tem em seu pôster emblemática, criado por Rogério Duarte, não a imagem de seus protagonistas, mas a do cangaceiro Corisco, personagem que só dá as caras no final do filme e representa uma verdadeira ruptura em seu desenrolar, exprimindo, com seu corpo e sua voz, as angústias de um mundo sofrido e uma bela catarse final, entre gritos e rodopios. O corpo e o rosto do cangaceiro é de  um artista a quem Glauber também já esbravejou contra, mas que se tornou um amigo e um ícone na atuação brasileira.


E tudo começou com um jovem empoeirado e com ares de desespero andando por uma rua de Salvador e perguntando de casa em casa se era ali que morava Othon Bastos. “Eu não fui comunicado sobre o papel de Corisco, eu fui caçado”, relembra o ator veterano, em entrevista ao Viver, sobre como foi encontrado por Glauber na entrada da pensão onde morava, sendo logo recrutado para o papel do cangaceiro. As filmagens do longa já estavam em curso no interior da Bahia e Corisco iria ser vivido por Adriano Lisboa, que desistiu do papel. 


“Ele chegou desesperado até mim e queria falar sobre o filme, mas eu estava preparando uma peça para a inauguração de um teatro da Sociedade de Teatro dos Novos, sequer sabia que o filme estava sendo rodado. Fomos para um restaurante lá do teatro, ele ainda sujo de poeira e falou que veio me buscar para fazermos o filme, que embarcaríamos no dia seguinte. Eu disse que ele estava maluco”, relata Bastos.
 
Os dois levaram a questão ao diretor-geral do teatro, que sugeriu a Othon ler o roteiro e, caso gostasse, fosse trabalhar no filme, o que de fato aconteceu, com o ator se encantando com o texto.  “O diretor perguntou a ele quanto tempo ele precisaria, Glauber disse que seriam 15  e ofereceu dinheiro para me alugar. Eu nunca tinha visto aquilo na vida, alguém comprar o passe de um ator”, conta.


Anos antes, o primeiro contato entre os dois foi com Glauber lançando duras críticas ao fato de Bastos ter sido contratado pela escola de teatro da Universidade do Estado da Bahia, por não querer “atores do sudeste” lá. Othon, nascido em Tucano, interior. “Ele esculhambou todo mundo, o reitor, todo mundo por terem contratados atores de fora. Eu precisei ter uma conversa com ele e dizer ‘sou baiano, do sertão, talvez até mais baiano do que você’. Esse foi nosso primeiro contato”, relata. 


Anos depois, estavam juntos em uma longa viagem de ônibus, discutindo o que viria a ser uma das maiores performances do cinema brasileiro. De cara, Othon encontrou um problema que precisaria ser solucionado para seu Corisco. Os planos de Glauber era que seu confronto final com o matador Antônio das Mortes fosse uma luta de facas com ambos mordendo extremidades de lenços, o que foi feito anos depois em O Dragão da Maldade. Mas, para o momento, o ator precisou derrubar a ideia. 


“Maurício (do Valle) é muito alto e forte, Adriano (Lisboa) também era. Eu tenho 1,70 e disse que se a cena fosse mantida daquele jeito, eu lutando contra daquela forma contra uma armário, ia se tornar uma comédia, o armário contra a mesinha de cabeceira”, comentou o ator e propôs uma solução prontamente acatada: fazer da participação de Corisco uma experiência bretchiana. O cangaceiro narraria sua jornada e os problemas do mundo em que se encontra com uma certa sonoridade, incorporando vozes como a de Lampião, com os rodopios marcando sua entrada e saída. 
 
A performance marcou a carreira de Bastos, que diz ter negado muitos outros papéis que vieram logo em seguida para interpretar outros cangaceiros, só voltando a fazer cinema alguns anos depois, para interpretar Bentinho em Capitu, de Saraceni. Carrega sempre consigo a lembrança de Glauber enquanto um artista genial, aberto ao novo. Voltou a trabalhar com o diretor em o Dragão da Maldade interpretando um professor bêbado o qual descreve como “apaixonado pela liberdade”. Para o papel, decidiu incorporar os trejeitos de Glauber. 


“Eu gesticulava como ele, usava uma camisa meio aberta e ele não percebeu. Só em uma visualização posterior, Barretão (Luiz Carlos Barreto) riu quando viu e falou pra ele. Quando ele se encontrou comigo, começou a falar ‘mas você tinha que me imitar!.  Expliquei que era uma homenagem para a eternidade, ele riu também e gostou”, rememora.


A LUTA PELA MEMÓRIA DE GLAUBER
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Acervo e memória de Glauber conta com intensas batalhas de sua filha, Paloma Rocha

(ANTENA DA RAÇÃ/DIVULGAÇÃO)
 


No último mês, quando foi revelado com parte dos materiais presentes no galpão da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina eram do acervo de Glauber Rocha, já havia um bom tempo que uma das principais lutadoras pela memória e do legado do diretor já cobrava o Secretário de Cultura Mário Frias pra tomar alguma atitude. Paloma Rocha, cineasta, filha de Glauber, já trava batalhas há décadas para manter vivo os trabalhos do pai, entre restaurações de filmes, gestão de arquivos e tentativas de diálogo com o poder público em prol de um material que é parte essencial da identidade cultural do país. 


No ano passado, quando uma inundação atingiu o mesmo galpão, ficou sabendo que havia sido atingido material do acervo do diretor, o qual geriu por muitos anos pela instituição Tempo Glauber, ela buscou o secretário e pediu providências, recebendo uma promessa de logo viriam funcionários finalistas para tocarem o trabalho na Cinemateca e resguardar o que havia sobrevivido. “Desde então eu fiquei ligando, procurando saber se já esses finalistas já tinham sido contratados e nada. Eles nunca chegaram e, na quinta-feira fatídica, vi na televisão que estava tudo pegando fogo. Eu tenho uma lista inteira de 50 páginas do que estava lá, que eu não consigo ler inteira, porque me debulho em lágrimas”, relata Paloma.


Entre o material perdido, estão textos, livros, teses, prêmios, cartazes, catálogos internacionais, roteiros, romances, materiais da fase baiana do diretor. Todos faziam parte do acervo da Tempo Glauber, fundada em 1983 pela mãe do cineasta, Lúcia Rocha, falecida em 2014, que também contou com atuação intensa de Paloma. Em 2017 , a sede da instituição fechou as portas e mais de 300 caixas foram retiradas por ela e a então coordenadora de documentação da Cinemateca, levando-as ao galpão que pegou fogo. 


Já os filmes restaurados e documentos como textos, cartazes e roteiros estão na sede da Cinemateca na Vila Clementino, desde quando foram adquiridos em 2011 durante o governo Dilma. “Eu já tinha feito essas transferências anteriormente pois já intuía esse tipo de coisa, como esse país é um sobe e desce. Como preservadora, você faz isso, deixa em três, quatro lugares diferentes. Tenho aqui, tem na Bahia, tem no Arquivo Nacional, tem com um amigo”, explica.


Ela vê na história da preservação da obra de Glauber um retrato das complicações em se querer preservar acervos de importância cultural para o país. As famílias são as primeiras a tomar as rédeas, mas nem sempre terão condições de mantê-los a salvo em condições ideais por longos períodos. Elas tentam buscar ajuda no estado, que também não cria condições para se fazer isso e esses materiais acabam ficando em um meio do caminho. 


“Quando meu pai morreu, eu intuí que esse negócio ia cair na minha cabeça. Era uma responsabilidade insana da minha parte, mas vi essa mesma insanidade na minha avó, que se dedicou aos filhos que morreram. Sendo o Glauber quem é e sendo eu quem sou, não conseguia seguir se eu não reconstruísse essa história até para construir minha identidade. Porque minha história de vida ficou toda estilhaçada nessas tragédias familiares todas. Eu fiz esse caminho seguindo o de minha avó”, elabora Paloma. 


Ela lembra de ter juntado uma documentação com a avó, colocado em uma caixa e se dirigido ao extinto Ministério da Cultura, jogou lá e bradou “estou fazendo o papel do estado, na difusão de uma obra cultural sem recurso nenhum”. Lutou para criar e aproveitar oportunidade, abrindo as portas para o restauro digital junto ao trabalho semelhante realizado com a obra de Joaquim Pedro de Andrade, trazendo especialização em mão de obra e tecnologias.  


Contudo, Paloma não enxerga os processos de digitalização como a grande solução para os acervos. Trata-se de um processo feito com o objetivo da acessibilidade que, por sua vez, torna menos necessário o acesso aos originais, aumentando sua preservação. Ao ser perguntada, sobre as expectativas e chegada de soluções no futuro, ela prontamente responde que não espera mais nada. “Eu digo que não espero mais nada, que espero o pior, não por pessimismo, mas porque eu acho que acreditar que a situação do mundo vai se resolver amanhã, é alienação”, afirma ser sua posição diante de um acidente dramático que não aconteceu por falta de aviso.


“Eu não me interesso por um culpado, mas pelo responsável, quem responde por isso hoje. Não quero saber de investigação da Polícia Federal, se foi algo que explodiu ou alguém derrubou uma lata de óleo lá. Eu quero saber quem vai responder pelo estrago e para que o outro galpão não queime também. Caguei para investigação, queimou, perdeu. Eu quero ver quem resolve, não tenho mais saco, é uma tragédia atrás da outra na minha vida e na vida nacional. Tem que fazer a investigação, mas pra mim tanto faz. Quero saber de quem é a irresponsabilidade política”, desabafa.