Durante os anos 1940, no auge da Segunda Guerra Mundial, o jovem Mahito, de 12 anos, perde a mãe em um incêndio que destrói um hospital e, logo em seguida, tem de ir morar no campo, na mansão secular da nova esposa do pai, que é também a sua tia. A casa gigantesca esconde uma torre, cuja entrada está lacrada e, portanto, rapidamente gera curiosidade no menino – frequentemente atraído por uma garça-real misteriosa que rodeia o lugar. 

Em cartaz nos cinemas, O menino e a garça é o novo filme de um dos maiores mestres da animação mundial, Hayao Miyazaki, e, de acordo com o próprio, seu último antes da aposentadoria. Vale lembrar que o diretor já declarou isso outras vezes: por exemplo, quando lançou o seu longa anterior, Vidas ao vento, de 2013. Concorrendo ao Oscar de melhor animação – e, após conquistar o Globo de Ouro e o BAFTA, com grandes chances de vitória –, o projeto parece ao mesmo tempo um retorno do cineasta a temas caros a sua obra e à iconografia que marcou seu traço ao longo das décadas. 
 
Dono de uma filmografia que inclui clássicos da animação 2D, como O serviço de entregas da Kiki, Meu amigo Totoro, A viagem de Chihiro e O castelo animado, Miyazaki tem um universo tão visualmente reconhecível quanto fascinante em sua ousadia fantástica. Não existe, nos filmes dele, qualquer objetividade que separe o mundo real da fantasia ou da abstração, já que seu cinema enxerga uma natureza de pureza singular nos elementos mais surreais e, da mesma forma, situações incompreensíveis que se misturam ao que há de mais mundano. O menino e a garça, nesse sentido, é quase uma constante experimentação com os limites da premissa e soa menos preocupado em ‘fazer sentido’ e mais interessado na reinvenção obsessiva da história. 
 
Assim como em Meu amigo Totoro e A viagem de Chihiro, Miyazaki coloca um protagonista infantil tendo de lidar ao mesmo tempo com o luto e com uma mudança repentina – e, adiante, com a responsabilidade de salvar os adultos (no caso deste, sua tia/madrasta) em meio a uma aventura sobrenatural. O curioso aqui é o fato da jornada de fantasia se concentrar em peso na segunda metade do filme, que leva a narrativa a direções geograficamente às vezes incompreensíveis mas sempre táteis, cheias de situações bizarras e cenários maleáveis.

O menino e a garça não possui a tração emocional intensa desses outros, talvez pelo fato de Mahito ser muito mais fechado e aguerrido do que os demais protagonistas de Miyazaki (majoritariamente personagens femininas). Seu apelo, portanto, depende de certa abertura do espectador para uma viagem em que as formas – às vezes brutais e grotescas – se sobrepõem à lógica. Mas, no meio dos voos malucos pelo onírico, o filme sempre encontra no simples afeto entre duas pessoas e cuidado humano um mote de identificação que dá forte unidade dramática a tudo.
 
O diretor retoma tópicos autobiográficos também – sobretudo na figura do pai, fabricante de aviões de combate –, mas, assim como os elementos típicos do seu universo (velhinhas estranhas, papéis vivos, pequenas criaturas flutuantes, aves enormes que parecem divindades), eles expandem a fantasia com uma admirável sensação de imprevisibilidade. 
 
Em outras palavras, O menino e a garça não é um compilado estéril de referências, mas uma renovação carregada com a beleza, o perigo e a inconsequência que fazem do cinema de Miyazaki um atestado sem rival do poder da imaginação.