O caso é de outubro de 2017. O canal de TV alemão ARD levou ao ar um documentário revelando exploração de trabalho escravo no nordeste do Brasil. Para fabricar suas balas de goma em formato de ursinho, a Haribo, empresa alemã, explorava crianças brasileiras para coleta da cera da carnaúba. A 40 reais por dia, elas dormiam ao relento, não tinham acesso a água potável e, por vezes, não se alimentavam durante as jornadas extenuantes. Tudo para que os ursinhos de goma fossem produzidos a baixo custo.

O caso da Haribo ilustra uma realidade longe de ser superada. Em 2016, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela existência de trabalho análogo à escravidão em seu território. De lá para cá, antes sob Michel Temer e depois sob Jair Bolsonaro, a rotina quanto ao tema é de inação, quando não de atitudes que favoreçam o trabalho escravo. Primeiro, a pasta do Trabalho, hoje um sub-ministério, parou de atualizar a Lista Suja, que relaciona os exploradores. Depois, normas de segurança no trabalho foram revogadas e, agora, um projeto de lei em trâmite na Câmara praticamente permite um regime de trabalho com cara, jeito e odor de escravidão.

“Em meados de 2019 foi iniciado um procedimento acelerado de alteração de normas regulamentadoras de segurança e higiene no trabalho, que estão previstas em portarias, sem respeitar os requisitos previstos na legislação para que essas alterações aconteçam. É um procedimento que estava sendo conduzido de forma muito rápida e sem as cautelas quanto ao impacto que isso teria nas normas de saúde dos trabalhadores, e também quanto a cientificidade e tecnicidade das alterações”, denuncia ao Brasil 247 o procurador do Trabalho Italvar Medina, vice-coordenador da Conaete, a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, órgão do Ministério Público do Trabalho.


Uma das normas alteradas foi a NR3 - da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho / Ministério da Economia -, que trata de procedimentos de embargos e interdições pelos auditores fiscais na hipótese de constatação de riscos graves e eminentes ao trabalhador. O que se fez foi dificultar a possibilidade de se interditarem máquinas, equipamentos e estabelecimentos ou de se embargarem obras que gerem riscos de morte e de graves lesões. “Dificultou-se muito, inclusive, a interdição de alojamentos degradantes de trabalhadores”, aponta Medina.

Paralelamente, em 2020 vários infratores deixaram de ser incluídos na Lista Suja do trabalho escravo. Segundo Medina, “o Ministério da Economia suspendeu todos os prazos administrativos de recursos contra autos de infração, e enquanto esses recursos não forem julgados os empregadores não podem ser inseridos na lista”. 

 A fundamentação para suspensão dos prazos e dos recursos foi a pandemia, explica o procurador. Contudo, a documentação necessária para tais recursos não precisa ser apresentada presencialmente. “Vários prazos semelhantes já foram retomados por vários órgãos e setores da sociedade, como o próprio Poder Judiciário, cujos processos continuam a correr”, observa.


De um Congresso que se faz de morto diante de mais de uma centena de pedidos de impeachment do presidente da República, claro, não se pode esperar proficiência quanto ao tema. Até agora não foi regulamentada a Emenda Constitucional 81, de 2014, que alterou o Artigo 243 da Constituição, conferindo-lhe a seguinte redação: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado no que couber o art. 5º, Parágrafo Único: Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.”

“O Ministério Público do Trabalho já ajuizou ações civis públicas buscando a nulidade das ações efetuadas em afronta à lei, e também para que as novas normas de saúde e segurança no trabalho passem a respeitar os requisitos estabelecidos na legislação”, relata Italvar Medina. 

Quando à EC 81, diz ele, ainda não foi regulamentada por falta de interesse político. “Os projetos que tentaram regulamentá-la buscaram na verdade alterar o conceito de trabalho escravo no bojo dessa regulamentação, querendo restringi-lo a hipóteses nas quais haveria restrições da liberdade física de ir e vir, o que deixaria de fora uma das mais importantes modalidades de trabalho escravo contemporâneo, que é a submissão de trabalhadores a condições degradantes por vezes alojados em barracos completamente indignos, sem acesso a água potável, alimentação de mínima qualidade, equipamentos de proteção ausentes e também salários”, explica.

 

Fonte:brasil247.com