Na capital federal, a menos de 18 km do Palácio do Planalto e do Congresso, um grupo corre em direção a um caminhão repleto de sacos de lixo doméstico. É quase meio-dia, chove fino na região da Estrutural, em Brasília.
Em poucos segundos, o caminhão é cercado por homens e mulheres à espera do despejo. Sob risco de queda e pressionados pela concorrência, alguns se penduram atrás da enorme caçamba.
Há velhos, jovens e crianças -elas são as primeiras a subirem na montanha de lixo que se forma, numa competição diária para ver quem garimpa mais plásticos, latas e outros recicláveis.
Um cheiro forte domina o lugar. Em menos de 20 minutos, um trator chegará para arrastar e compactar o lixo. Cenas como essas se repetem todo o dia naquele que é o maior lixão a céu aberto da América Latina, e um dos maiores do mundo, com 40 milhões de toneladas de detritos acumulados e área de 2 quilômetros quadrados -maior que o parque Ibirapuera, em São Paulo, por exemplo.
Do ponto mais alto até a base (abaixo do nível do solo), a montanha de detritos chega a 55 metros. É como se um prédio de 18 andares de lixo estivesse ali, construído sem nenhuma proteção prévia e aumentando a cada dia. Um cenário e uma rotina que agora têm data prevista para terminar: 20 de janeiro.Não é a primeira tentativa.
Nascido irregularmente após a criação de Brasília, no início dos anos 1960, o lixão da Estrutural (cujo nome formal é Aterro Controlado do Jóquei) já poderia ter sido fechado há 20 anos, quando o Ministério Público aumentou a pressão contra o local.
Em 2011, a Justiça chegou a determinar o fim do aterro -o que não ocorreu. Em 2014, terminou o prazo para encerramento de lixões e aterros irregulares previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos. Nada aconteceu.
O governo do Distrito Federal afirma que só agora tem condições para que o encerramento aconteça, porque houve a inauguração de um aterro sanitário em Samambaia, modelo que diminui o impacto do descarte, e o aluguel de galpões e compra de equipamentos para coleta seletiva.
Há ainda um termo de compromisso assinado com a nova data. "Em hipótese nenhuma será adiado", diz Heliana Kátia Campos, diretora-presidente do SLU (Serviço de Limpeza Urbana), órgão responsável pela gestão do lixo.
GUERRA FRIA
A iminência do possível fechamento tem sido alvo de uma espécie de "guerra fria" entre governo e catadores. Hoje, a estimativa é que 1.200 pessoas trabalhem no lixão, de forma rotativa, sem horário ou dia fixos. Catadores, porém, afirmam que o número é maior: como não há controle, chegaria a 2.000.
O grupo se divide. Alguns dizem não acreditar no fim. "Não fecha. O governo empurra com a barriga e nós empurramos junto", diz, aos risos, Leopoldina Pereira, 57, a Tiazinha, em frente ao barraco que fez para descanso em intervalos do garimpo no lixão.
Outros temem ficar de mãos vazias. "Não adianta a gente sair daqui para não ter aonde ir", reclama Dica Viana, 54, uniforme camuflado e camiseta puxada entre os olhos e a boca, numa espécie de máscara improvisada.
Segundo o governo do DF, assim que fechar o aterro da Estrutural, os catadores devem ser direcionados a cinco galpões de coleta seletiva em pontos diferentes da cidade.
Como compensação, cada um deles deverá receber bolsa de R$ 360 por seis meses, além de até R$ 350 por tonelada de material separado. Já a renda com a venda será de cada catador e cooperativa.
A proposta não agrada Dica. "Ir para o galpão não tem como. Disseram que tinha esteira e tudo para tirar o lixo, mas o pessoal que já foi ainda está tirando na base da pá e carregando nas costas."
Catador desde os 21 anos, ele lembra do primeiro dia. Saiu de Goiânia à procura de emprego. Um amigo lhe indicou o novo "serviço". "Coloquei a mão no nariz e quis vomitar. Falei: você é doido, isso não é para mim não."
Em menos de um mês, ainda desempregado, estava de volta. Como ele, outros catadores começaram ali por falta de emprego. "Há dois anos, vim ver o lixão e parecia a Serra Pelada", compara a diretora do SLU, referindo-se ao maior garimpo a céu aberto do país na década de 1980.
O "ouro" ali é outro: mangaba (plástico mais duro), papelão branco e latinhas. A renda varia conforme o material e a quantidade coletada -os poucos que falam sobre isso estimam em R$ 400 semanais.
TRABALHO INFANTIL
O acesso ao lixão é praticamente livre. Apesar de haver uma cerca, a barreira não impede que crianças circulem e trabalhem, o que é ilegal.
A Folha encontrou três no aterro em 13 de dezembro. Com luvas e sacos nas mãos, elas eram as primeiras a subir em cada nova montanha despejada por caminhões.
Editoria de arte/Folhapress |
À vista de funcionários do SLU e da empresa Valor Ambiental, que opera no local, o grupo separava materiais. Segundo o SLU, são encontradas uma média de 15 crianças e adolescentes no lixão por mês. Mas, em apenas uma semana, um levantamento do Conselho Tutelar da Estrutural em 2016 registrou 268 crianças e jovens de 4 a 17 anos.
"Atuamos por lá, mas é como se estivéssemos enxugando gelo", relata o conselheiro tutelar Israel Lopes. Segundo ele, após o levantamento, parte das crianças e jovens que estavam fora da escola conseguiu vagas ou serviços como aprendizes. Mas voltavam depois.
Procurada, a Valor Ambiental não quis comentar. Já o SLU informou que uma assistente social vistoria diariamente o local, mas nem sempre consegue solução. "Quando flagradas, a assistente adverte os pais e dá encaminhamento necessário, mas muitas vezes elas correm e se escondem, ou os pais não colaboram", diz, em nota.
ESTRUTURAL
Região que cresceu ao redor do lixo, a Cidade Estrutural tem a menor renda do DF por domicílio (pouco mais de dois salários mínimos). A carência agrava o problema.
"Criança nenhuma tem vontade de trabalhar. Mas a condição de precariedade leva a isso", diz Coracy Coelho, um dos fundadores do Coletivo da Cidade, que oferece contraturno para crianças cujos pais trabalham no aterro.
Wanderson Silva, 22, por exemplo, começou a trabalhar no lixão aos 12 anos. "Vim para ajudar a família em casa. Minha mãe já trabalhava aqui." Desde então, nunca conseguiu mudar. "Não queria ficar aqui, mas não tenho outro emprego", diz ele, que fica no local das 7h às 18h.
A rotina degradante também é perigosa. Em setembro, um menino de 14 anos que catava lixo com o pai morreu atropelado por um caminhão. Em depoimento à polícia, o motorista afirmou que, como vários catadores subiram na caçamba, demorou a perceber que havia atropelado alguém.
Só em 2016, foram ao menos dez ocorrências registradas entre janeiro e outubro.
Há outros problemas à vista. Bem à vista. Só uma cerca separa o Parque Nacional de Brasília, uma unidade de conservação com 420 km², do Lixão da Estrutural. "Identificamos ameaça à fauna e flora. O lixo fornece alimento a animais carniceiros, como urubus, o que traz transtorno ao parque e gera desequilíbrio ", explica a chefe do parque, Juliana Alves.
O principal impacto, porém, vem da emissão de gases e da ausência de tratamento adequado do chorume, líquido poluente gerado pela decomposição do lixo. "Esse chorume acaba infiltrando no solo e indo em direção ao parque, com risco de atingir o lençol freático."
Essas situações já renderam até R$ 24 milhões em multas a pedido do Ministério Público do DF e do governo federal. "As pessoas que vivem na Estrutural estão sob risco", diz o promotor Roberto Carlos Batista. Em 2012, uma escola foi interditada por vazamento de gás metano.
Segundo Pedro Murrieta, professor de engenharia civil da UnB, embora ajude, só o encerramento das atividades do aterro não impede novos danos ambientais. "O problema de contaminação que ele já criou e ainda vai criar é muito sério. O tratamento é mais que necessário, senão o lixo que esta lá continuará gerando chorume e pode atingir algum afluente do Paranoá."
Questionada, a diretora do SLU afirma que o governo deve contratar um estudo para verificar a possibilidade de recuperação da área do lixão. A medida ainda não tem prazo.
O FUTURO DO LIXO
Segundo o governo, a ideia é que também seja feita a "cobertura" do lixo hoje exposto com camadas de solo e outros. Em seguida, o aterro da Estrutural deve ganhar outra função: receber resíduos inertes da construção civil, como entulho de demolição, pedras e areia. Uma usina será contratada para operar no local.
Enquanto isso, as 1.800 toneladas de lixo por dia para lá enviadas (cerca de dois terços do total gerado no DF), devem mudar de destino. Desde o início do ano passado, o um terço restante já é depositado no aterro sanitário de Samambaia inaugurado em janeiro de 2017 -modelo que dispõe de proteção ao solo, tratamento de chorume e controle de gases.
A previsão é que a estrutura, com 76 hectares, 32 deles para compactação do lixo, acolha todo o volume. Só não há certeza por quanto tempo. Se mantidas as condições atuais, em que a coleta seletiva só atinge cerca de 60% da população do DF, o aterro teria capacidade para durar mais nove anos.
O governo do DF alega que negocia a compra de dois terrenos de 30 e 40 hectares ao lado para ampliá-lo. Também planeja expandir a coleta seletiva para 100% em 2018. "A expectativa é ter uma solução por pelo menos três décadas", diz Kátia Campos, do SLU.
Enquanto isso, o catador Pedro Paulo Rodrigues, 52, sonha com uma solução para para as próximas duas semanas, quando está marcado o fechamento do lixão. Ainda não sabe se vai aceitar a oferta do governo, que pretende realocá-lo em Ceilândia. Há sete anos, mora em um barraco, com sete familiares, na Estrutural.
Seu sonho é voltar para Pedreiras, no interior do Maranhão, onde antes trabalhava como pedreiro. É um dos poucos que já teve outra atividade. "Tem gente que só sabe trabalhar aqui, nunca teve outra profissão", diz. "Só não voltei ainda porque não tive condição. Mas, se fechar, quero tentar voltar."