Uma criança de 4 anos dá entrada já sem vida no pronto-socorro com sinais de espancamento no meio da madrugada -- a causa da morte revelada depois é hemorragia interna por laceração no fígado mas há lesões nos braços, cabeça e outras partes do corpo. A mãe liga para o pai da criança e diz achar que o filho caiu da cama. O padrasto, um vereador conhecido na zona Oeste do Rio de Janeiro e que estava com ela no apartamento de luxo de onde o menino entrou vivo e saiu morto, conversa nervoso com os médicos e tenta liberar o corpo da criança sem passar por perícia no Instituto Médico Legal com um telefonema ao diretor do hospital, sem sucesso. Liga também para o governador do Estado, Cláudio Castro, e sonda o que a polícia vai fazer. Depois, faz várias chamadas para policiais conhecidos e políticos aliados antes do corpo do menino esfriar na maca. Quando o pai, que deixou o menino com o político e a ex-mulher horas antes, chega ao hospital, ele diz olhando nos seus olhos: “Vamos virar a página. Faz outro filho”.


Este é o resumo do caso policial que chocou o Brasil há pouco mais de um mês e teve um desfecho parcial nesta semana com a prisão temporária do vereador Doutor Jairinho (ex-Solidariedade) e sua namorada Monique Medeiros na quinta-feira, 8, mãe de Henry Borel Medeiros, de 4 anos. Eles são acusados de tentar obstruir as investigações do assassinato de Henry, que morreu no dia 8 março. A Polícia Civil está segura que o casal foi responsável. Segundo a polícia, Jairinho teria espancado Henry até a morte e a mãe, que estava junto na hora, não fez nada para salvá-lo. A polícia esperou o resultado parcial das perícias nos telefones celulares e no local do crime para pedir as prisões.

O caso não foi encerrado e as investigações prosseguem. Após a prisão, a polícia revelou detalhes ainda mais estarrecedores, como por exemplo que Henry foi submetido a sessões de espancamento e tortura pelo vereador em outras ocasiões. Ele levava o menino para o próprio quarto, ligava o som da TV no máximo e batia nele sem dó. Uma conversa por WhatsApp da babá da criança com a mãe, quase um mês antes do crime, revela essa tortura. Revela também que Medeiros sabia de tudo e não fez nada para proteger o filho e afastá-lo do agressor. Tudo havia sido apagado de seu celular, mas prints da conversa foram recuperados pela polícia com um software israelense. Ela estava no shopping enquanto o filho era espancado em casa e não foi socorrê-lo na ocasião e nem depois, já que não contou nada para ninguém e continuo vivendo junto com o vereador e o filho. Na conversa com a babá, Monique mostra-se preocupada, pede para ela descer com o menino ou levá-lo para o shopping onde estava, diz que pensa em colocar uma câmera para filmar as agressões.

- Ai meu Deus, diz Monique em mensagem, quando a babá lhe conta que o Jairinho está fechado no quarto de Henry com o volume da TV alto. Ela orienta a babá a entrar no quarto e o menino sai. Se queixa de dor no joelho e diz que o tio deu uma rasteira nele e o chutou. Monique até diz “Eu vou colocar microcâmera”, no que parece ser uma tentativa de encontrar uma prova concreta contra o parceiro. Mas, mesmo após a morte de Henry, continuou ao lado daquele que é apontado pela polícia como autor do crime. A babá também é investigada pois mentiu no depoimento e não contou nada disso para os investigadores. Também não está descartada a omissão de outras pessoas próximas.

Semanas depois da morte de Henry, deram entrevista para a televisão, sustentando a versão de que o filho estava caído da cama e que teriam corrido para o hospital. Ela insinua alienação parietal por parte do pai de Henry, Lenio Borel. Ele assegura que foi um acidente. “Eu tenho certeza absoluta, diante de Deus, que assassinato não foi”, disse ele ao jornalista Roberto Cabrini.

O vereador, eleito com apoio evangélico e com o lema da defesa da família, não é o primeiro político carioca a percorrer o curto caminho entre a vida pública e um crime monstruoso nos últimos anos. A cantora gospel, pastora e deputada federal Flordelis (PSD) foi denunciada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro no ano passado como mandante do assassinato de seu marido em 2019, o pastor Anderson do Carmo. Ele foi morto a tiros em uma emboscada ao chegar em casa com a esposa. Jairinho foi eleito vereador por primeira vez em 2004, então com 27 anos, e reeleito quatro vezes depois.

Antes de virar um vilão nacional, já possuía uma longa carreira nesse caminho na qual foi acusado de diversos crimes violentos que vão desde agressões contra mulheres e outras crianças até envolvimento com milícia e tortura de jornalistas na capital carioca. Nunca havia sido punido antes. Seu partido, o Solidariedade, anunciou sua expulsão depois da prisão nesta quinta e a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, que havia lhe concedido uma cadeira no Conselho de Ética, abriu processo para seu afastamento do mandato. Jairo de Souza Santos Júnior, de 43 anos, é filho do ex-deputado estadual Coronel Jairo (MDB) e seu herdeiro político no reduto eleitoral de Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Notória pela presença de milícias, é na região que fica a Favela do Batan. Nas redes sociais, é possível ver pelo menos um vídeo de Coronel Jairo abraçado ao então candidato Flávio Bolsonaro (Republicanos) pedindo votos para ele e fazendo campanha na região em 2018. Doutor Jairinho também deixa claro seu alinhamento aos Bolsonaro em suas fotos e materiais de campanha recentes.

Em 14 de maio de 2008, uma repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal “O Dia” foram torturados após serem capturados por integrantes da milícia que dominava o local. Naquela ocasião, o pai de Jairinho, que é policial militar reformado, foi apontado como um dos políticos envolvido com os criminosos. No texto “Minha dor não sai no jornal”, escrito para a revista “Piauí” em 2011 o fotógrafo Nilton Claudino, um dos sequestrados e agredidos por sete horas, conta como Jairinho e o pai participaram da sessão de tortura. “A repórter reconheceu a voz de um vereador, filho de um deputado estadual. E ele a reconheceu. Recomeçou a porradaria. Esse político me batia muito. Perguntava o que eu tinha ido fazer na Zona Oeste. Questionava se eu não amava meus filhos”, afirma o jornalista no relato publicado pela revista. A Polícia Civil do Rio de Janeiro chegou a investigar o pai do vereador pelo caso, mas ele não foi indiciado. Jairinho, que naquela época já era vereador, não foi oficialmente investigado. O caso foi relembrado pelo colunista Lauro Jardim no jornal “O Globo”.

Disfarçado, o trio havia se mudado para o local para fazer uma série de reportagens sobre a atuação das milícias na região. Os bandidos teriam descoberto a verdade sobre a equipe através de colegas do próprio jornal, conforme os sequestradores contaram aos jornalistas durante o cativeiro. Os três passaram por sete horas e meia de cárcere privado com interrogatórios, socos, pontapés, roleta-russa, choques elétricos, sufocamento com saco plástico e tortura psicológica. Durante as agressões viram policiais fardados e foram libertados após ameaças de morte e sob a condição de que mantivessem segredo sobre o caso. Duas semanas depois, o jornal publicou o caso e alguns milicianos foram presos após investigações, mas não os políticos.

“Não aconteceu nada com o vereador e o deputado estadual cujas vozes minha companheira repórter reconheceu no cativeiro. Eles negaram envolvimento com a milícia e nunca foram punidos. Agora mesmo, em julho passado, o deputado apareceu ao lado do governador do Rio numa foto de inauguração, não muito longe de onde fomos torturados”, afirma o jornalista na reportagem sobre Jairinho e seu pai deputado estadual, preso em 2018 pela Operação Furna da Onça, suspeito de receber mesada para aprovar projetos de interesse do governo Sérgio Cabral. Coronel Jairo também teve o nome citado na CPI das Milícias, concluída pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2008, mas seguiu sem problemas com sua carreira política até 2018, quando tentou se reeleger e não conseguiu Pouco depois foi preso e conseguiu liberdade provisória no ano seguinte.

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Monique Medeiros, mãe do menino Henry Borel, deixa delegacia no Rio de Janeiro após prestar depoimento sobre a morte do menino de 4 anos.TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL

 

 

Histórico de agressões


Pai de três filhos, Jairinho foi acusado por ex-namoradas após a morte de Henry no início de março de ter agredido a elas e seus filhos, na época dos relacionamentos crianças da faixa de idade de Henry, em passado recente. A polícia abriu inquérito para investigar pelo menos um desses casos. Sua ex-mulher e mãe de dois dos filhos, Ana Carolina Ferreira Netto, registrou em 2014 um Boletim de Ocorrência contra o vereador por agressão e tentativa de enforcamento, mas depois voltou atrás nas afirmações. Em 2019, eram constantes as brigas e gritos provenientes do apartamento do político e os vizinhos chegaram a chamar a Polícia Militar mais de uma vez.

Ex-líder do então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) na Câmara, Jairinho é formado em medicina mas nunca exerceu a profissão, apesar de utilizar o título de doutor em seu registro oficial como político. Já foi vice-presidente da Comissão de Saúde da Câmara do Rio e presidente da Comissão de Educação, presidente da Comissão Especial do Plano Diretor do Município e 1º Suplente da Mesa Diretora. Como vereador do Rio, Jairinho está exercendo seu quinto mandato e é muito próximo de lideranças evangélicas, das quais ganhou apoio na corrida eleitoral. Nas eleições do ano passado, foi reeleito com 16 mil votos. Ele foi eleito pela primeira vez em 2004, aos 27 anos, pelo PSC. No ano passado, fez questão de frisar na campanha eleitoral seu alinhamento com o presidente Bolsonaro.

No dia 11 de março, três dias depois da morte de Henry, Jairinho assumiu uma vaga no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar na Câmara Municipal. Antes de assumir a vaga, já havia protagonizado episódios de denúncias a outros parlamentares no órgão, como afirma o ex-vereador Brizola Neto (PSOL). “Vereador Jairinho, preso por assassinar e torturar o menino Henry de 4 anos, foi o primeiro a me colocar na comissão de ética por levantar um cartaz dizendo ‘Fora Milícia!’”, disse Brizola, em sua conta no Twitter.

O vereador e a mãe de Henry foram presos temporariamente por 30 dias e as investigações continuam. A criança morreu no apartamento onde Jairinho e Monique moravam juntos há cerca de um ano, na Barra da Tijuca, depois de passar um fim de semana com o pai, Leniel Borel. O pai já deu diversas entrevistas onde se culpa pela morte do filho, já que o menino pediu para ficar com ele naquele domingo e disse que não queria ir embora para a casa da mãe. Segundo reportagem do jornal O Globo, dias antes do crime, ele contou para o pai e a avó em uma vídeo chamada com a babá o que estava acontecendo. “O tio me machuca”, teria dito a criança. O pai pressionou a avó e a mãe, mas disseram que ele estava inventando por que não gostava na casa nova onde foi morar com a mãe.

De acordo com a própria Monique e o pai em depoimentos, Henry dava sinais estranhos quando ia voltar para o apartamento de Jairinho após ficar fora. Chorava, vomitava, passava mal, ficava muito nervoso. Passava por tratamento junto a psicóloga por causa disso. Mas os sinais aparentemente não foram traduzidos ou levados a sério a tempo. O advogado do casal, André França Barreto, diz que eles são inocentes.