Quem não consegue comprar botijão tem improvisado com uso de álcool e fogão a lenha

Ana Paula de Santana:
Foto: PRISCILLA BUHR
Por: MARINA ROSSI / EL PAÍS
Recife

Logo cedo a professora Ana Paula de Santana, 40, acende a lenha do seu fogão para fazer o café da manhã da família: banana da terra, cuscuz, ovos da sua própria criação de galinhas e café preto. Embora tenha fogão a gás dentro da cozinha, ela prefere cozinhar a lenha. “Minha mãe fazia isso por necessidade”, conta ela. “Eu faço por escolha”. Moradora do bairro do Barro, na periferia do Recife, ela explica que se “recusa” a pagar pelo alto preço do gás. Segundo o Procon, o valor médio do botijão no Grande Recife é 64 reais. Mas há quem cobre até 150 reais pelo produto. A cozinha a lenha de Paula é sua forma de resistência. “Eu me nego a pagar esse preço”.

Desde o meio do ano passado, o valor do gás, assim como o do combustível, é ajustado de acordo com o mercado externo. Segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), ao consumidor coube um aumento no botijão de 16,4% em 2017, descontada a inflação. Foi a maior alta desde 2002.

E além do aumento do preço, o consumidor do Grande Recife encara também o desafio de encontrar gás para vender, reflexo da greve dos caminhoneiros, que foi encerrada há uma semana mas que, por motivos que ainda são causa de discusão, ainda afeta ao Estado de Pernambuco. Pela cidade, diversas revendedoras estão com fila de espera ou até mesmo fechadas pela falta dos botijões.

Paula diz com tranquilidade que esse sufoco enfrentado pela população durante a greve não a afetou. “Quando a cebola foi a quase nove reais o quilo, eu me recusei a comprar. Cozinhei com alho que tinha em casa e com os temperos da minha horta”, diz. “Durante a greve, emprestamos nosso botijão reserva para um vizinho que estava precisando. Quando o gás de casa acabou, fui cozinhar numa boa com a lenha que eu mesma pego na mata aqui do lado de casa”, afirma.

Mas nem todo mundo tem o mesmo poder de escolha de Paula. Após passar dez dias sem gás em casa, no período da greve, o casal Reginaldo Pereira, 45, e Joacyra Chagas, 45, passou a cozinhar com álcool de cozinha. “A gente foi se virando como podia, comendo fora, ou fazendo as refeições com pão e tomando suco”, conta Pereira. “Mas aí eu comprei uma daquelas coisas de churrascaria [rechaud], e passamos a usar”.

O risco desses improvisos é elevado, já que a forma que se usa combustível para cozinhar é praticamente uma bomba relógio. O álcool, ou outro inflamável, é colocado em uma panela ou lata - ou o rechaud -, e nela coloca-se fogo. Outra panela vai dentro, com o alimento ou a água para esquentar. O acidente ocorre quando a chama está diminuindo, e a pessoa coloca mais combustível ali dentro. A combustão é imediata e, em muitos casos, queima-se tudo, inclusive a casa.

90% das internações ligadas às queimaduras com álcool de cozinha

Foi o que ocorreu com Joacyra. Esquentando água para o café no rechaud, ela acabou colocando fogo na casa inteira. “O fogo entrou pela garrafa do álcool”, contou o marido, na maca da unidade de tratamento de queimados do Hospital da Restauração (HR), no centro do Recife. As chamas consumiram tudo o que havia na casa. Na tentativa de ajudar a esposa, Pereira teve as mãos e os pés queimados. Já Joacyra fora atingida no tronco, braços, rosto e cabelo. Ambos estavam internados no HR. “Só quem sofre é quem não tem dinheiro para comprar um botijão”, disse Joacyra, com dificuldade.

O chefe da unidade de tratamento de queimados do HR, doutor Marcos Barretto, explica que acidentes como esse já vinham aumentando nos últimos quatro meses, mas agora, os casos explodiram. Em abril, 28% dos pacientes adultos internados foram vítimas desse tipo de queimadura, segundo Barretto. Em maio, o percentual subiu para 35%. Na última semana, porém, 90% das internações ocorreram devido às queimaduras com álcool de cozinha. Dos 25 leitos no total para adultos, 22 estão preenchidos. “Isso é um absurdo”, diz Barretto. “Esse número é inédito. Dos 44 anos em que eu trabalho aqui, nunca vi isso”.

Ele associa diretamente o aumento dos acidentes com a alta dos preços. “Quando percebi isso acontecendo, foi juntamente com o aumento do combustível”, diz o médico. “O gás aumentou tanto que a minha clientela, que é de baixo poder aquisitivo, e não tem mais como arcar com essa aquisição, passou a usar mais ainda o álcool e a gasolina como combustível para cozinhar”.

Além da preocupação com o aumento recorde dos casos de queimados por combustível, o médico levanta outro problema. “Este período, que é junino, a minha média de internação varia de 19 a 25 pessoas só com fogos e fogueira”, diz. “E eu não tenho vagas para eles. Onde eu vou colocar esses pacientes que vão começar a chegar? No corredor?”.

Hora extra para abastecer

De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores no Comércio de Minérios e Derivados de Petróleo de Pernambuco (Sintamico), faltam botijões no mercado, o que dificulta o reabastecimento. Ao portal G1, o presidente do sindicato, Walmir José Marinho Falcão, estimou que ao menos 500.000 vasilhames estão estocados. Suspeita-se que um comércio clandestino de botijões, somado ao medo da população de ficar novamente desabastecida, sejam os responsáveis por esse estoque. O Procon investiga o que está causando essa escassez e orienta que as distribuidoras vendam apenas um botijão por pessoa.

O presidente do Sintamico também informou que desde o fim da greve, os trabalhadores estão fazendo horas extras para dar conta de engarrafar o gás que é distribuído por todo o Estado de Pernambuco, além da Paraíba e Alagoas. “Tem muita gente precisando de gás”, disse ele ao portal.

Por meio de nota, representantes das empresas que operam no porto de Suape, informaram que todas as companhias estão trabalhando em regime especial para normalizar a situação. De acordo com a nota, a meta é atender a uma demanda reprimida de dez dias por botijões de gás. Normalmente, saem do porto 104.000 botijões abastecidos ao dia, mas desde o fim da greve, esse número subiu para 135.000 botijões ao dia.

Subsídio

Enquanto o abastecimento não se normaliza, a população segue se arriscando. Alexsandra Vandete, 36, teve os braços, peito, cabelo, costas e pernas queimados quando foi acender o fogo com álcool para cozinhar uma feijoada. “Já tínhamos passado a tarde inteira na fila do gás, mas não chegou nenhum botijão”, disse ela, internada no HR. Após o acidente, a irmã de Alexsandra, Jaqueline Vandete, 29, foi correndo atrás de gás. Só achou por 95 reais, mas comprou mesmo assim. “Agora está todo mundo com medo”, disse ela, enquanto visitava a irmã no hospital.

Ainda que a situação do abastecimento se regularize, as ocorrências registradas no Hospital da Restauração não devem diminuir. “Enquanto o preço do gás não abaixar, ou o Governo não der um subsídio para a população mais carente comprar gás, isso não vai parar”, diz o doutor Barretto.

Em 2001, o Governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) criou o Vale Gás, programa de distribuição de renda para auxiliar a população mais carente a comprar o botijão. O programa, porém, foi encerrado em 2008 e incorporado pelo Bolsa Família. Já em fevereiro deste ano, o Governo Federal afirmou que estava estudando medidas para reduzir o preço do gás para as famílias de baixa renda. Até o momento, porém, nada foi anunciado. "Por que temos que ficar subordinados a isso?”, questionou Paula, enquanto cortava a lenha em seu quintal. "Temos que mudar o nosso estilo de vida para viver bem, e não apenas para sobreviver".