Quando a espingarda de chumbinho disparou na minha mão, eu olhava para baixo. Estava sentado, com ela apoiada no chão. Telísio estava em pé, ao meu lado. O chumbinho cravou no seu pescoço na lateral esquerda. Muito sangue, desespero. Sorte que não pegou nenhuma veia. História de matar passarinhos na minha vida acabou ali.

De outra, viagem para Marilac, norte de Minas, terra de pistoleiro. Seu Zé do Jó, prefeito, teimou de inventar que eu devia aprender a atirar. Eu ali pelos 14 anos, passei tardes dando tiro no casco de Coca. A Smith Wesson calibre 24 era uma jóia, uma maravilha. Mas acertar a garrafa era outra coisa. Mais de cem tiros e nada. Mas me era permitido dormir com aquela beleza.

Em Muriaé, fazenda Barra Alegre, as espingardas ficavam escondidas. Escondidas onde todos sabiam. Era o pessoal distrair, em especial o Tininho, primo mais velho, querido, e a gente corria pro quarto do Maurício pegar a Winchester. Era a maior glória do universo infantil. Era a mesma espingarda que John Wayne, com uma mão só, armava e desarmava, matando todos no filme, recarregando, rodando enquanto cavalgava. Nossa principal viagem: colocar balas na agulha, pela lateral da arma, como se fazia nos filmes de faroeste.

O que a gente mais gostava de fazer era debulhar um projétil de cartucheira. Você abre e tem centenas de minúsculas bolinhas de pólvora. A gente espalhava pela casa esperando que alguém caísse. Ou colocava em baixo de pedra e pulava em cima. Era um estouro que nem fogo de artifício. A cartucheira ficava escondida em cima do armário mais alto. Pequenos, a gente juntava mesa, cadeira e banquinho. E pegava a bruta para brincar.

A minha infância foi toda com presença de revólveres, espingardas. Meu pai tinha uma gaveta grande, com todas elas. Vivia trancada. Mas a gente sabia onde ele guardava a chave. A minha preferida era uma Mauser, alemã, aquela que armava levantando as duas rodinhas no cão. Nos filmes de guerra, o soldado nazista sempre dizia que ela tinha a alma mais lisa do mundo. Ao contrário da cartucheira, que tinha a alma raiada. Até que um dia a chave sumiu. Meu pai trocou o lugar do esconderijo. Eu descobri tarde o motivo. Demorou uns 15 minutos para encontrar, na parte de cima do quadro da Santa Ceia. Abri, peguei a Mouser, habituado que estava e ela escorregou da minha mão de 7 anos. Caiu no chão e estalou um tiro que vazou a janela e parou na parede do prédio vizinho. Foram os segundos de maior solidão da minha vida, aqueles. Um silêncio imenso, o vidro estilhaçado e a arma no chão. Minha mãe chegou e nunca mais elas entraram na minha casa.

Afinal, crianças sempre encontram as armas.

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