Fonte: Diario do Centro do Mundo
Como dizia Nelson Rodrigues, com sarcasmo que lhe era próprio, há situações em que os idiotas perdem a modéstia. Nesta semana, a balbúrdia dos idiotas chegou a tirar nosso sono. Esmeraram-se na idiotice um suposto supremo magistrado, um candidato militar a presidente da república e um jornalista de arrogante desconhecimento do direito internacional.
O pano de fundo: uma manifestação do Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Não se trata de um tribunal internacional, como alguns hiperbolizam; nem de uma reunião de condôminos, como outros desdenham. O Comitê é o órgão de monitoramento do tratado, incumbido de fazer com que os estados-parte o cumpram. Só isso. Mas não é pouco.
Trocando em miúdos:
O direito internacional dos direitos humanos constitui regime normativo fundado na responsabilidade internacional do estado e não na responsabilidade de seus agentes individualmente considerados. Basicamente, isso significa que quem é chamado às falas por violações de direitos humanos é o estado. Indivíduos, particulares ou não, podem dar causa a violações, mas, no âmbito do direito internacional dos direitos humanos, quem responde é o estado.
A razão é simples. O conceito de direitos humanos descreve certa qualidade na relação entre governo e governados; uma relação sobretudo libertária, não desejada por forças totalitárias e autoritárias. É por isso que na escuridão dos regimes ditatoriais o conceito passa a ser sinônimo de subversão. Mas, atingida a borda do copo, quando a indignação pública chega ao limite, os direitos humanos são desfraldados como uma bandeira de protesto. Simbolizam o sonho por justiça e liberdade e centralizam a pauta de infinitos desejos.
Ocorre que, vitorioso, o movimento de protesto atravessa a rua e seus líderes ocupam os palácios de governo e os prédios de sua estrutura burocrática. Não têm mais como raciocinar em termos de infinitos desejos. Governar é limitar, focar, recortar e priorizar. Os desejos da rua podem ser infinitos, mas os recursos do governo são finitos. Esse recorte necessário da extensão dos desejos burocratiza o conceito de direitos humanos, que, processados pela máquina administrativa, se transformam em diretriz de governo, norma posta, interiorizada no discurso constitucional como “direitos e garantias fundamentais”, uma espécie de direitos humanos burocratizados, pasteurizados.
Mas a história não pára aí. Ela continua e derruba os soberbos. Se o governante quiser um mínimo de estabilidade, uma sobrevida maior, precisa flexibilizar. É necessário que o sistema de direitos respire e seja capaz de evoluir, de se renovar. Quando “direitos e garantias fundamentais” se transformam em limite, em parede, em muro do permitido e não em porta para a liberdade, o regime político estará assinando sua sentença de morte. Do contrário, quando quem governa tem consciência de que os direitos postos são apenas uma contingência e que os direitos humanos é que são sua razão de governar, porque é por eles que atravessou a rua do protesto para o palácio, sua longevidade é maior.
Portanto, mesmo cristalizados os direitos humanos num conceito constitucional de “direitos e garantias fundamentais”, é preciso que se mantenham vivos, que extravasem da parca e tosca jurisprudência dos burocratas togados. O povo, a rua, é a razão de viver do estado; não os agentes públicos que pululam nas instituições sempre provisórias e mortais. Quem é o guardião da constituição democrática é o espaço público, onde todos se manifestam – e não uma instituição judicante qualquer, por mais suntuosa que possa parecer no auge de sua arrogância litúrgica.
Os direitos humanos permanecem, assim, como medida da performance do governo. Quando são fonte de inspiração para sua ação, contribuem para legitimá-lo. Quando são esquecidos e as armas e os parágrafos tomam seu lugar para conter as ruas, o governo pode resistir um pouco à pletora de desejos, mas não muito, pois será engolido pelo redemoinho da história. Afinal, como disse o libertador Lafayette, pode-se fazer muitas coisas com baionetas, menos sentar-se nelas.
O sistema internacional de proteção dos direitos humanos não é inimigo dos governos democráticos. Pelo contrário. É fonte para sua inspiração. É indispensável conselheiro para lidar com as ruas. É adubo para manter frondosa a flor dos desejos que dinamizam a liberdade. Foi instituído depois de uma grande catástrofe, a segunda guerra com seu holocausto, para nos lembrar que vivermos livres vale a pena.
O PIDCP, de 1966, compõe com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), do mesmo ano, a espinha dorsal desse sistema. Cada tratado tem seu órgão de monitoramento como meio de governança multilateral, uma forma de garantir que fortes e fracos sejam tratados igualmente no cumprimento das obrigações contraídas perante a comunidade internacional. Os órgãos de monitoramento são compostos por especialistas para que seu discurso não se perca no pragmatismo dos interesses estratégicos dos estados. Não passam a mão na cabeça de ninguém, não estão vinculados às conveniências da governabilidade. Os Estados Unidos da América são tão alvos de suas críticas e advertências quanto a Venezuela, o Tajiquistão ou a Alemanha. Ali sim, o pau que bate em Chico, bate em Francisco também.
Em nossa ordem mundial contemporânea, Estados são soberanos. Isso significa que, ressalvados os mais caros interesses coletivos da comunidade internacional, têm exclusividade para se governarem para dentro e para fora. Não admitem concorrência no uso da violência dentro de seu espaço. Mas nada os impede de cederem parte de suas competências exclusivas para organismos internacionais, quando lhes convém. Fazem seu juízo de custo-benefício e aderem a regimes internacionais que oferecem equilíbrio e estabilidade a certos objetivos de governança.
É por isso que Estados passam a fazer parte – soberana e voluntariamente – do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Quando resolvem integrá-lo, fazem concessões. Comprometem-se a respeitar e fazer respeitar um catálogo de direitos consensuado. Dão sua palavra e se vinculam a ele. Esse vínculo não é moral ou político apenas. É jurídico porque se faz por meio de uma norma internacional, um tratado, com seus preceitos e seus processos próprios.
O descumprimento das obrigações contraídas pelo vínculo ao tratado dá lugar à chamada responsabilidade internacional do estado, um conjunto de novas obrigações que se justapõem às obrigações inadimplidas, como a reparação do dano do descumprimento, a garantia de não repetência da inadimplência e a cessação de qualquer violação de deveres inerentes. Eventualmente, quando essa violação constitui, também, um crime internacional atribuível a quem lhe deu causa individualmente, o estado violador é obrigado, ainda, a lhe promover a responsabilização penal (“dever de perseguir”). É o caso típico de crimes como tortura, redução à escravidão, genocídio, crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, apenas para mencionar alguns exemplos.
Estamos aqui falando de obrigações de ordem jurídica, com consequências normativas claras e não de meras admoestações políticas, como alguns interesseiros querem fazer crer. Estados se vinculam formalmente a essas obrigações e se comprometem a cumprir as recomendações dos órgãos de monitoramento dos tratados de direitos humanos. Não se trata de uma opção, de fazer ou não fazer; de uma coisa menor, sem relevância. Tem a importância do status que um estado escolheu ter perante a comunidade internacional. Não se pode querer estar dentro de um sistema para fazer bonito – “human rights are sexy” – e, ao mesmo tempo, não levar a sério suas regras quando contrariam interesses políticos circunstanciais. Um estado que assim se comporta é um estado-moleque que não merece o respeito dos outros estados e, por isso, deve arcar com as sanções inerentes à falta de respeito pela própria palavra empenhada, pelo descumprimento das obrigações pactuadas perante todos.
O estado é, para o direito internacional, um monólito no plano da vontade. Não se distingue entre as atribuições internas de seus agentes e nem entre a abrangência do espaço de governo de seus órgãos domésticos. A República Federativa do Brasil lá fora é uma coisa só. A ação de seu executivo, de seu legislativo ou de seu judiciário suscitam igualmente a responsabilidade do estado como um todo, da mesma forma que é irrelevante, para esse efeito, se a violação de deveres inerentes à norma internacional partiu da União, dos Estados ou dos Municípios. Todos são parte de um só Brasil. O agente da guarda municipal que tortura afeta a responsabilidade do estado brasileiro da mesma forma que a tortura praticado pelo policial federal. Não cabe, por isso, a órgãos de monitoramento de tratados apontar para esse ou aquele órgão em suas recomendações, advertências ou medidas provisórias: elas são dirigidas à República Federativa do Brasil como um todo e essa república que se vire internamente para cumprir o que se lhe determina.
O problema do Brasil é que as aristocracias burocráticas não têm compromisso com o estado como um todo. Somos um estado fraco, fragmentado pelos conflitos de suas gananciosas e ambiciosas corporações entre si, presa fácil para a ação de estados estrangeiros que ora lançam sua isca para essa corporação, ora para outra. A isca, diga-se de passagem, é da modéstia da fome de um Barnabé do serviço público: boas viagens, palestras, bons hotéis e restaurantes, passagens em classe executiva e paparicação nas visitas. Meios baratos de se comprar idiotas vaidosos no comando de instituições frágeis.
Daí vem a perplexidade de quem nada entende de direito internacional: o Comitê de Direitos Humanos do PIDCP advertiu o “estado brasileiro” sobre o direito de Lula participar das eleições, de forma genérica, sem dizer o que cabe a quem fazer o quê! O Comitê realmente se referiu somente ao “estado brasileiro”, porque não lhe compete fazer exegese constitucional e ditar qual órgão do Brasil deve garantir o direito de Lula. Simples assim. O Brasil que se vire para não ficar feio na fita!
O Comitê, diferente do governo norte-americano, não está aí para pentear a vaidade de procuradores, ministros ou chefetes de departamentos. Virem-se, Senhores! Todos estão não vitrine e cuidem-se para não levarem pedrada na frente de toda a comunidade internacional. Suas briguinhas intercorporativas são fúteis e não interessam a ninguém lá fora. Cumpram seus deveres!
E não venham com filigranas burocráticas a apontarem para essa ou aquela disposição de direito doméstico que lhes impediria cumprir o que lhes é demandado sob a autoridade do tratado. O art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados não lhes dá margem: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Isso basta para enquadrar o balaio de gatos em que se transformou o “estado brasileiro”!
Até aqui a explicação.
É nesse contexto que devem ser examinadas as declarações de um suposto “ministro do STF” e do candidato-capitão-de-pantufas Jair Bolsonaro. Um teria dito que a advertência do Comitê de Direitos Humanos não tinha mais importância do que uma reles ata de reunião de condomínio. O outro, mais delirante, teria sugerido tirar, acaso vença as eleições presidenciais, o Brasil das Nações Unidas, “uma organização de comunistas”. Para coroar o febeapá, um tal de Carlos Sardenberg, da Globo News, resolveu chamar a advertência de “fake news”.
A ser verdade o que insistentemente se difundiu na mídia e nas redes sociais, todos, a seu modo, ao falarem mal do Comitê, dizem mais sobre si mesmos do que sobre o malfalado. Claro, devemos lhes dar o benefício da dúvida – em tempos de “fake news”, podem todos eles ser “fake news”. Mas a insistência das invectivas, verdadeiras ou não, merece resposta.
Começando pelo suposto “ministro”. A estatura de “ata de reunião de condomínio” é, para o direito internacional, o valor que se dá a decisões pusilânimes ou interesseiras de um judiciário que perdeu seu apego ao estado democrático de direito. O conchavo entre instâncias, sem nenhum escrúpulo com as provas dos autos, para sacrificar uma liderança política, não é digno de um estado-parte do PIDCP. Referir-se a normas de direito internacional com tamanho desprezo mostra apenas quão pequenas nossas instituições são neste mundão de Deus. Não adianta nenhum verniz de viagens culinário-acadêmico-recreativas às “Oropa” para mascarar a tacanhice capiau de quem tem a descompostura de se manifestar desse jeito sobre instituições internacionais. Só uma coisa pode-se dizer desse “ministro”: não está à altura de suas responsabilidades. De resto, que leia as explicações acima. Delas carece. E muito.
Quanto ao tal Carlos Sardenberg, vou lhe sugerir o que muito orientador sugere a seus orientandos na academia: escreva sobre o que entende. Não se meta, como jurista, a escrever sobre sociologia se não conhece minimamente os fundamentos e as grandes referências bibliográficas dessa ciência. Pega mal. E se insistir em escrever sobre essa ciência alheia a sua especialidade, pode ter que se explicar a uma banca de sociólogos e aí quebrar a cara. Isso vale para o tal jornalista. Não se meta a falar sobre o que não entende e muito menos ainda com tamanha arrogância de sabichão, um verdadeiro “Klugscheißer“, como dizem os alemães – “excrementador de inteligência”. Questione humildemente e deixe a pergunta em aberto, se a advertência do Comitê lhe causa perplexidade, mas não diga que a importância de sua manifestação no âmbito de um tratado de que o Brasil é parte não passa de “fake news”. Pega mal e o ambicioso periodista quebra a cara.
Finalmente, o capitão de pantufas. Querer sair da ONU é inédito. Estados brigam para entrar nela. Mudam até de nome, se for necessário, como a tal da Macedônia que aceitou ser Fyrom! O que será do Brasil pós-ONU? Parem o mundo porque quero descer?
Desculpem o tom, mas é preciso exclamar: durma-se com um barulho desses!