OPINIÃO
1. Da presunção de inocência
Desde logo e antes de quaisquer outras considerações, é necessário deixar assentado que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou em seu texto o direito à liberdade (artigo 5º, caput). Neste diapasão, a Constituição proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII)[1].
Como já dito inúmeras vezes, ninguém, absolutamente ninguém será considerado culpado enquanto não houver esgotado todos — absolutamente todos — os recursos. Gostemos ou não, a Constituição consagrou o princípio da “presunção de inocência”. De qualquer modo, qualquer outra interpretação que se possa pretender equivale a rasgar a Constituição. No dizer de Ulysses Guimarães, “o documento da liberdade, da democracia e da justiça social do Brasil”.
Necessário relembrar que, no ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento do Habeas Corpus 84.078, reconheceu que o princípio da presunção de inocência se aplicava até que houvesse uma condenação definitiva, transitada em julgada. A referida decisão impedia, assim, a chamada execução provisória (antecipada) da pena, enquanto tivesse recurso pendente.
Lamentavelmente, em 17 de fevereiro de 2016, o Plenário do STF, por 7 votos a 4, em julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, revendo a posição anterior, considerou que é possível a execução da pena depois de condenação confirmada em segunda instância, porém antes do trânsito em julgado.
Em tese de doutoramento, Antonio Magalhães Gomes Filho assevera que:
À luz da presunção de inocência, não se concebem quaisquer formas de encarceramento ordenadas como antecipação da punição, ou que constituam corolário automático da imputação, como sucede nas hipóteses de prisão obrigatória, em que a imposição da medida independe da verificação concreta do periculum libertatis[2].
Notadamente, em razão do princípio constitucional da presunção de inocência é que se verifica a excepcionalidade da prisão cautelar/provisória — em qualquer das suas modalidades —, conforme o STF já decidiu:
A prisão cautelar, que tem função exclusivamente instrumental, não pode converter-se em forma antecipada de punição penal. A privação cautelar da liberdade constitui providência qualificada pela nota da excepcionalidade somente se justifica em hipóteses restritas, não podendo efetivar-se, legitimamente, quando ausente qualquer dos fundamentos à sua decretação pelo Poder Judiciário (STF – 2ª T. HC 80.379-2 – Rel. Celso de Mello).
2. O caso Azeredo
No dia 24 de abril, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por 3 votos a 2, rejeitou os embargos infringentes opostos pela defesa do ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo, que buscava a prevalência do voto vencido que o absolveu quando do julgamento do recurso de apelação em agosto de 2017. Naquela oportunidade, o Tribunal de Justiça de MG, por 2 votos a 1, manteve a condenação da 1ª instância e fixou a pena em 20 anos e 1 mês de prisão.
Em razão da condenação, o TJ-MG determinou a expedição de mandado de prisão em desfavor do ex-governador Eduardo Azeredo, em consonância com o entendimento firmado pelo STF no julgamento do HC 126.292/SP, que autorizou a execução de decisão penal condenatória proferida em segundo grau de jurisdição.
A chamada execução provisória ou antecipada da pena em razão de confirmação de condenação em segunda instância é, por si só, inconstitucional. Somente aqueles que negam o “óbvio ululante” e que se recusam a enxergar que fora dos casos excepcionais de prisão cautelar, previstos na lei processual penal, não há no ordenamento jurídico pátrio qualquer possibilidade de prisão antes da sentença condenatória transitada em julgado, ao menos em que se verifique, concretamente, o periculum libertatis, é que pugnam pela odiosa forma de antecipação da tutela penal.
É evidente que, independentemente de a condenação ter sido unânime ou não, toda e qualquer pessoa deve ser presumida inocente até que haja uma condenação definitiva — transitada em julgada. Dados da Defensoria Pública revelam que inúmeras condenações são revertidas em absolvições nos tribunais superiores, mas bastaria um único caso para se revelar a injustiça e afastar a inconstitucional prisão em decorrência da condenação em segunda instância.
A estreiteza da condenação no julgamento do ex-governador Eduardo Azeredo — denúncia recebida no STF por 5 votos a 3 (à época Azeredo era denador); condenação no TJ-MG por 2 votos a 1 e, por fim, embargos infringentes rejeitados por 3 votos a 2 — trouxe à tona a discussão e a seguinte indagação: a prisão em razão da condenação em segunda instância é “automática”?
O jurista Lenio Streck, em artigo publicado na Folha de S.Paulo ("Tendências e Debates", 18/5), diz com todas as letras que “não”. Segundo ele, “o que poucos se deram conta é que nem o Supremo Tribunal Federal concorda com essa automaticidade”. De acordo com Lenio, só dois ministros — Luiz Fux e Luís Roberto Barroso — dos que votaram pela prisão em decorrência de condenação em segunda instância é que votaram pela “solução radical”, ou seja, a automaticidade da prisão.
Sendo assim, ainda que prevaleça no STF, em absurda hipótese e ad argumentandum tantum, a prisão em decorrência de condenação em segunda instância, não poderá ser automática. Necessário, caso não seja concedido ao réu — notadamente ao que respondeu todo o processo em liberdade — o direito de aguardar a decisão definitiva em liberdade, que o tribunal fundamente e justifique sua decisão. Na hipótese, não poderá o tribunal se valer da “automaticidade” da prisão.
3. Conclusão
É certo que o processo penal não pode ser visto hoje como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas, também, como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. O processo penal acusatório — único compatível com a democracia — deve ser balizado e interpretado conforme a Constituição da República. Constituição que, como já dito, consagrou a liberdade como direito fundamental.
De tal modo, o princípio da presunção de inocência é direito e garantia fundamental próprio de um processo penal democrático e de Estados comprometidos com a dignidade da pessoa humana.
Não importa aqui se a decisão condenatória em segunda instância se deu por unanimidade ou por diferença mínima de votos — como no caso Azeredo. Não importa se se trata de azul ou de vermelho, se é preto ou branco, não interessa. O que verdadeiramente importa é que a Constituição da República — nosso “Livro de Regras” — nos iguala ao dizer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Presunção de inocência: direito de todos e garantia do cidadão.
[1] Segundo Gustavo Badaró, “certamente, a fonte inspiradora de tal dispositivo foi a Constituição italiana de 1948: L’imputato non è considerato colpevole sina Allá condanna definitiva”. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.60.
[2] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991.