CASO MARIELLE


Rio de Janeiro, fim de uma manhã quente na quinta-feira última. Uma mulher aguarda o veterinário atender o cachorro de nome Chico, que está com algum tipo de alergia. A cena parece corriqueira. Mas nada é normal na vida Mônica Benício, 33 anos, principalmente depois que a companheira, a vereadora Marielle Franco, foi brutalmente assassinada, no bairro do Estácio, em 14 de março do ano passado.
 
Na verdade, agora, Mônica não quer uma vida normal. “Com muita certeza, eu não quero. Ainda estou nesse processo de negação, eu ainda não aprendi a lidar com a ausência dela.” Para driblar a dor ou, como ela mesmo diz, “fingir que simplesmente nada aconteceu para não lidar com a realidade”, ela mergulhou na militância em diferentes frentes. Pautas políticas e sociais, luta contra a homofobia e pela liberdade total das mulheres são algumas delas.


Em entrevista ao Correio, ela comenta o aparente pouco caso dos governos federal e estadual para elucidar o crime contra a mulher, revela que ainda não viveu o luto por Marielle e não descarta uma candidatura no futuro. Mônica se queixa, ainda, de que, mesmo com os diversos pedidos por meio de assessores, nunca foi recebida em uma audiência pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.


Como estão as investigações sobre a execução de Marielle?

Infelizmente, o que é dito, de forma oficial ou não, é o que acaba sendo divulgado pela imprensa. É um ritmo que, a essa altura, parece ser mais lento do que a primeira fase, quando foram indicados os acusados de serem os executores: tanto o atirador como o motorista. Não sei se essa sensação vem também de uma dinâmica de silenciamento da mídia. É óbvio que com o passar do tempo, as pessoas tendem a se conformar com algumas coisas e jornais param de vender com certas notícias, então, eu não sei se existe um desinteresse, de certa forma, público quanto a isso. Com a justificativa de que as investigações correm sob sigilo, tudo é muito pouco divulgado. Inclusive para a própria família. Então, o diálogo é bem restrito, embora o Ministério Público, sempre que procurado, esteja disposto a me receber.


Em janeiro, o governador do Rio, Wilson Witzel, afirmou que o Caso Marielle estava próximo de um desfecho. O governo federal fala muito pouco sobre o caso. O que a senhora tem a dizer sobre isso?


Para começar, quando o governador do Rio declara que o caso está adiantado é, no mínimo, querer despertar uma certa deselegância da minha parte ao dizer que está adiantado porque não foi a mulher dele. Não é razoável porque, em janeiro, o caso estava completando quase um ano e passamos dos 500 dias sem que esse crime seja solucionado. O Brasil passa uma vergonha internacional porque não é só falar de uma luta justa pela minha companheira, mas, enquanto brasileira, eu me sinto profundamente envergonhada quando um dos crimes políticos de maior repercussão da história do país fique tanto tempo sem ser elucidado.


O ex-ministro Raul Jungmann fez afirmações parecidas no ano passado...


Ele fez a mesma afirmação, mas, ainda assim, quando era ministro da Justiça, nunca deixou de me receber, sempre tive com ele um amplo diálogo a respeito das investigações, coisa que o atual ministro (Sérgio Moro) se recusa a fazer. Foram muitas tentativas de solicitação de um pedido para que me recebesse e conversássemos a respeito da investigação, que é de competência da Polícia Federal, sob comando do próprio Moro. No início do mandato, ele declarou que reconhecia que o caso da Marielle era de extrema importância e que era imprescindível para o país que ele fosse solucionado. Depois disso, o ministro silenciou. Não sei se ele perdeu o interesse, se está com outras coisas para se preocupar neste momento, mas o fato é que não se fala mais nada e, mesmo na época da candidatura, todos os presidenciáveis se manifestaram, com a exceção do atual presidente Jair Bolsonaro, e, até hoje continua assim.


Então, você pediu audiências, mas nunca foi recebida pelo Moro?


Tentei contato por meio de assessores, mas nunca fui recebida por ele.


E o governo estadual?


Esse é um governo que é muito difícil ter um diálogo. A minha postura política e, enquanto carioca, é muito complicado pensar em estar na frente de alguém como o atual governador. Então, sinceramente, eu não tive nem o interesse de procurar.


Você sente que há uma má vontade por parte dos governos federal e estadual no caso Marielle por questões políticas?


Se a má vontade que ocorre for só nesse sentido, eu posso dormir até um pouco mais tranquila. O que muito me preocupa, porque obviamente foi um crime político, é que essa má vontade possa ter interesses políticos também a fim de que não seja deliberadamente esclarecido. Então, prefiro acreditar que se for só por uma questão de má vontade, seja pela postura política da Marielle, seja pela minha ligação com o PSOL, a gente pode acreditar que, ainda assim, eles estariam trabalhando de alguma maneira, que pode não ser midiático, mas que queiram solucionar o caso porque, independentemente de qual partido ela pertencia, se era de esquerda ou de direita, ela era uma parlamentar democraticamente eleita, que foi executada num crime político que hoje tem repercussão internacional.


A senhora chegou a morar um tempo em Brasília no início deste ano, mas retornou ao Rio. Por quê?


Porque estou trabalhando com o deputado Marcelo Freixo aqui no Rio e também por ter manifestado uma vontade pessoal de queria voltar à cidade. Nesse tempo todo, foram muitos vínculos desfeitos, tanto com a minha família como com amigos.

Voltar ao Rio foi muito difícil?

É difícil estar de volta, mas, em algum momento, eu precisava encarar essa dificuldade. Esse processo de agenda muito intensa, muito trabalho, poucas conexões afetivas, tudo isso faz parte de um processo de fuga do luto, eu transformei o que era luto em verbo muito rápido. Imediatamente, me envolvi num processo de luta por justiça por Marielle que não me permitiu viver o luto. Eu, ainda hoje, por exemplo, estou sendo muito sincera, em determinados momentos, prefiro fingir que simplesmente nada aconteceu para não lidar com a realidade. Faz parte também de um processo de não terapia. Voltar ao Rio é doloroso, mas, em certa medida, é também ter algum tipo de afetividade e de laço. A saudade se transforma em algo diferente, não é mais tão dolorosa. Eu consigo ver alguns momentos com carinho.


Diante disso tudo, a senhora acha que um dia voltará a ter uma vida normal?


Não sei se eu já tive uma vida que pode ser chamada de normal, nem quando estava casada com Marielle era normal, uma rotina fora do padrão, um relacionamento lésbico, que não é algo fácil socialmente. Mas dentro do que você me perguntou, eu diria que não e que hoje, com muita certeza, eu não quero. Ainda estou nesse processo de negação, eu ainda não aprendi a lidar com a ausência dela.


A senhora está cada dia mais envolvida na militância em causas ligadas à comunidade LGBT. Como está sendo?


Essa é uma pauta de luta que é muito importante, muito cara para mim, por motivos óbvios. O meu relacionamento com a Marielle teve muitas idas e vindas por conta da dificuldade a respeito de um diálogo social por homofobia, família, situação financeira, e tudo sempre estava, de alguma maneira, ligado ao fato de sermos lésbicas. Quando a gente finalmente consegue ficar juntas, essa pauta ainda era um problema. Depois do 14 de março, eu fui muito abraçada pela população LGBT, que foi fundamental nesse momento de dor e na compreensão de que eu não estava sozinha. Eu comecei a fazer um movimento natural para mim, não porque uma vereadora foi assassinada, mas porque tinham matado a minha mulher. Esse movimento natural, espontâneo, foi pela minha companheira, e não por uma pauta política específica seja lá qual ela fosse. Nessa caminhada, a população LGBT teve muita empatia e solidariedade comigo, assim com o movimento de mulheres, quando eu vi, de repente, já estava caminhando de mãos dadas ao lado dessas pessoas. Hoje, luto para que ninguém precise passar pelas dificuldades que eu e Marielle passamos.

A senhora tem vontade de se candidatar, de se envolver com uma vida política partidária?

Vontade é uma palavra muito forte. Nunca tive qualquer intenção de ter um cargo político, tinha muito receio pela Marielle e lhe digo com toda clareza e franqueza do mundo que jamais foi por temer a vida dela, mas porque ela sempre trabalhou muito, tinha uma agenda muito intensa. A gente faz política todos os dias, de várias maneiras e em muitos lugares. Hoje, o meu interesse não é de ter uma vida como figura pública sendo parlamentar. Mas não descarto. Ainda está cedo para decidir, há muitas pessoas que me pedem, sou muito cobrada, mas, no final das contas, isso vai ser uma decisão que só vou tomar se eu tiver plena certeza de que poderei cumprir com a responsabilidade que esse cargo tem, mas sem sacrificar a minha vida mais do que eu tenho feito.


A senhora consegue apontar uma coisa boa sobre o governo Bolsonaro?


Sim. Ele deu mais motivos para continuarmos a ser resistência. Foi a única coisa que esse governo conseguiu fazer por nós. Permitiu que a gente compreenda que a situação é muito dramática e que, mais do que nunca, a gente precisa caminhar lado a lado.


A senhora disse em uma entrevista que só tinha conseguido viver o luto pela vereadora Marielle e não pela sua mulher. Como está isso atualmente?


Não consegui, mas sendo honesta, nem tentei. Esse processo da fuga do luto sempre foi muito doloroso, mas muito consciente também. Hoje eu admito que, talvez, tenha chegado a hora de começar a pedir ajuda para viver esse luto.