PUNITIVISMO MIDIÁTICO

Por Felipe Luchete

Nem parece que o tempo passou, mas faz dez anos que a garota Isabella Nardoni, de 5 anos, despencou de seis andares de um prédio em São Paulo, dando origem a um dos episódios mais rumorosos da história policial brasileira. Para o jornalista Rogério Pagnan, que acompanhou o caso desde a origem, a morte da criança no dia 29 de março de 2008 ficou na memória nacional como O Pior dos Crimes, título do livro que ele acaba de lançar pela editora Record para contar os detalhes das investigações.

Em um trabalho minucioso e com capítulos bem definidos, o veterano repórter reconstrói momentos, cita trechos de processos e narra como o pai e a madrasta, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, passaram a virar suspeitos de assassinar Isabella.

O livro tem pelo menos dois resultados significativos: explica como funciona o sistema acusatório e demonstra que, embora a investigação tenha sido considerada na época um “CSI brasileiro”, lacunas e mentiras foram ignoradas.

Quem não se lembra da versão de que foi encontrado sangue no carro dos Nardoni, o que indicaria que a garota havia sido agredida antes mesmo de a família chegar ao apartamento no edifício London? Nunca existiu. Foi colhido um material biológico que pode ser baba ou catarro, mas não é sangue e provavelmente não é de Isabella (outras pessoas presentes no veículo têm chance maior, conforme o exame de DNA).

Segundo Pagnan, a perícia mudou de lugar objetos do apartamento e até o lugar do orifício de onde a garota teria sido jogada: o rasgo na tela da janela foi feito no lado direito, porém fica à esquerda no laudo, para sustentar que a vítima deixou um rastro com as mãos no azulejo do prédio, na parte externa. O trabalho ainda descumpriu regras básicas, omitindo qualquer referência à validade e ao lote dos reagentes utilizados.

Anna Jatobá e Alexandre Nardoni foram condenados a aproximadamente 26 anos e 30 anos de prisão, respectivamente, e nunca confessaram participação no crime.
Reprodução

Sem contar que a perita principal, Rosangela Monteiro, diz ter mestrado e doutorado na PUC-SP, mesmo sem registro na instituição nem cadastro na plataforma Lattes, ferramenta comum na área acadêmica.

Há ainda outra revelação importante para criminalistas: o autor teve acesso a um relatório sigiloso de 2013 sobre unidades da Polícia Científica de São Paulo. Conforme o documento, nenhum laboratório do estado é certificado por órgãos independentes, o que levanta dúvidas sobre o valor jurídico de provas produzidas muito além do caso Nardoni.

Antecipar parte das descobertas do autor não torna a leitura dispensável: o livro tem como mérito reconstituir os fatos, a história e a angústia de vizinhos, o comportamento da imprensa e o amargurado destino de toda a família Nardoni.

O ponto negativo está na ausência de imagens, que poderiam ajudar o leitor a visualizar a planta do edifício e do apartamento, o quarto da vítima, a sequência do trabalho da polícia no dia da morte, as trocas feitas pela perícia e a famosa maquete usada no julgamento, por exemplo. De acordo com o autor, foi uma escolha editorial, porque a opção mais viável seria reunir imagens num encarte único, ficando distantes do texto.

Atores do sistema judiciário
A obra ainda traça um retrato dos protagonistas do sistema de Justiça. Ali estão policiais que, conforme relato de Anna Jatobá, comeram ovos de Páscoa de sua geladeira; fizeram estranhas perguntas durante o interrogatório sobre as relações sexuais do casal e divulgaram amplamente a data do depoimento dos suspeitos, instalando até banheiros químicos em frente ao 9º Distrito Policial para a multidão esperada.

O pedido de prisão preventiva, como advogados da área penal bem conhecem, baseou-se na garantia da ordem pública e num hipotético plano de fuga dos suspeitos. A inovação foi a apresentação de perguntas na tentativa de convencer o juiz: “Para não responderem pela barbárie praticada, eles acusam o porteiro, depois levantam suspeitas contra o zelador, em seguida tentam colocar a culpa no pedreiro. Quantos talvez não aparecerão, por eles apontados, como sendo os autores do homicídio de Isabella?”, questionou a delegada Renata Pontes no requerimento.

O juiz Maurício Fossen não viu problema e determinou a prisão. Também considerou normal registrar o que pensava sobre a dupla antes de apresentada a denúncia: “Pessoas desprovidas de sensibilidade moral e sem um mínimo de compaixão humana”.

No Ministério Público, o primeiro promotor a acompanhar as investigações ficou esquecido. Contrário aos holofotes, Sérgio Assis foi substituído após a prisão pelo menos discreto Francisco Cembranelli — que considerou “fantasiosa” a versão do pai e da madrasta em entrevistas mas, dias depois, recuou e passou a criticar a imprensa por veicular “especulações”.

Advogado Roberto Podval foi atingido por urina em dia de júri popular.
ConJur

A denúncia não conseguiu demonstrar a motivação do crime, enquanto a sentença em nenhum momento descreve o ato de cada réu — embora a individualização da conduta seja exigência legal, lembra Pagnan.

Ele aponta que a disputa de egos entre os quatro advogados que passaram pela causa também gerou prejuízos aos réus. Uma das estratégias para tentar anular provas — falta de exame de sangue dos clientes na madrugada da morte —, foi sepultada quando um dos defensores decidiu apresentar sozinho pedido de Habeas Corpus, dizendo exatamente o contrário.

O primeiro profissional a assumir a defesa, Ricardo Martins de São José Júnior, foi impedido de acompanhar o plenário no primeiro dia do júri porque o criminalista Roberto Podval cedeu espaço das cadeiras disponíveis ao repórter César Tralli, da Rede Globo. Apesar de acompanhar o caso desde o início, Ricardo ficou chorando no banheiro do Fórum de Santana naquele dia e só participou do fim do julgamento.

Os advogados, proibidos de usar o estacionamento do Fórum de Santana, ainda foram agredidos durante o caminho a pé — Podval foi até atingido por urina.

O Pior dos Crimes, portanto, conta como os impactos da morte de Isabella alcançaram uma série de pessoas — da cúpula da segurança pública paulista aos dois meio-irmãos mais novos da menina, que cresceram sem amigos da mesma idade em festas de aniversário e chegaram a ser proibidos pela Justiça de visitar os próprios pais na prisão.

O livro afirma que nem tudo foi esclarecido sobre aquele 29 de março de dez anos atrás, apesar dos fogos de artifício e aplausos no fim do Tribunal do Júri, em 2010. Sem cravar se Alexandre e a mulher são culpados ou inocentes, deixa questionamento mais abrangente do que o “quem matou?”. A dúvida é se o atual aparato judiciário é confiável e justo.