Houve ilegalidades na forma com que a Polícia Federal tocou a operação que levou à condenação do ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho (PP). Segundo a delegada da PF Carla de Melo Dolinski, que trabalhou no caso, o político cometeu crimes e há provas, mas os métodos usados para descobri-los depõem contra a investigação.
Pelas provas a que teve acesso, a delegada acredita que realmente houve desvio de recursos do programa Cheque Cidadão, mas discorda dos métodos usados nas investigações. Para ela, houve prisões para forçar pessoas a confessar e entregar outros. Se colaborassem, eram liberadas; se não, continuavam presas. Instado por ela a usar delações, o delegado federal Paulo Cassiano disse não haver tempo para formalizar esse procedimento. Essa velocidade exagerada, na visão de Carla Dolinski, visava a terminar a operação antes das eleições de 2016 e das férias do juiz Glaucenir Oliveira, titular da 100ª Zona Eleitoral do R
Garotinho foi condenado a 9 anos e 11 meses por corrupção por compra de votos para as eleições de 2016 em Campos dos Goytacazes. Em depoimento prestado no fim de 2016, mas que só foi juntado aos autos do processo há pouco, a delegada Carla Dolinski criticou a forma como a operação foi conduzida desde o começo.
Chefe da Delegacia da Polícia Federal de Campos desde 2015, Carla afirmou que, quando as investigações começaram, o delegado Paulo Cassiano queria conduzir o inquérito. Ele tinha o apoio do promotor eleitoral Leandro Manhães. Mas Carla negou o pedido, já que Cassiano não era especialista em matéria eleitoral.
Em outra operação no fim de 2016, o vereador de Campos Ozeias Martins (PSDB) foi preso por suposto uso do programa social Cheque Cidadão para comprar votos. Depois disso, Manhães passou a ligar frequentemente para Carla pedindo que ela transferisse a investigação da 75ª Zona Eleitoral do Rio para a 100ª, de forma que ele pudesse deflagrar uma ação mais ampla. Pressionada pelo promotor e pelos delegados Marco Aurélio e Cassiano, a chefe da PF na região cedeu e colocou Cassiano no comando do caso, contrariando o Memorando 7/2016 da corporação, que estabelece as regras internas de distribuição de inquéritos.
Depois disso, Manhães e Cassiano autorizaram a prisão de pessoas que estavam na autoescola de Ozeias. Conforme Carla Dolinski, eles não tinham nada a ver com o Cheque Cidadão. Mas Marco Aurélio e Cassiano disseram que as detenções eram necessárias para a criação de um fato e da teoria de que haveria uma organização criminosa -— até porque o crime de corrupção eleitoral tem pena pequena (até 4 anos de prisão), que não justificaria a prisão preventiva. A delegada afirma que seus colegas e o promotor sabiam que os presos eram inocentes.
Em toda a operação, o inquérito tramitou livremente entre a delegacia e o MP, sem seguir os trâmites legais, segundo Carla Dolinski. Isso gerou muitas críticas dos advogados, porque, muitas vezes, eles não sabiam onde o processo estava.
No depoimento, Carla conta que, durante esses trâmites informais, viu uma representação ser escrita pelo promotor Leandro Manhães e apenas assinada por Paulo Cassiano — o que é ilegal, já que representações são atos típicos do delegado de polícia.
Correição problemática
Para apurar eventuais irregularidades na operação, Carla Dolinski decidiu pedir a Cassiano o inquérito para enviar os autos para correição. Ele não gostou da ideia e tentou evitar que ela se concretizasse. Carla conta que, 40 minutos depois de ter recebido o inquérito, recebeu uma ligação de Manhães questionando a demora da delegada em enviar o caso à Justiça.
Carla estranhou a ligação. Afinal, só Cassiano sabia que o inquérito estava com ela. Ela apontou a importância das correições ao promotor. Logo depois que desligou o telefone, Carla recebeu outra ligação, de um assessor do juiz Glaucenir Oliveira, dizendo que ele não atenderia ao pedido de enviar o caso para correição "em hipótese alguma". Para a delegada, ficou claro que alguém tinha alertado o juiz de sua intenção. Glaucenir nega qualquer envolvimento na trama.
"Forma estranha"
Foi nesse momento que Carla diz ter percebido que “a operação vinha sendo conduzida de forma estranha”. Ela não entendeu por que havia tanta resistência às correições. Entrou em férias, mas suspendeu o repouso por um dia quando soube do mandado de prisão contra Garotinho, cumprido no dia 16 de novembro de 2016.
Carla chegou à delegacia e disse ter visto Marco Aurélio com um documento. No depoimento, ela contou que o colega explicou que tinha em mãos uma decisão judicial já pronta, redigida por ele e por Paulo Cassiano, negando os pedidos da defesa, à espera de assinatura do juiz do caso, Galucenir de Oliveira.
Na ocasião, o ex-governador alegou problemas cardíacos. Por isso, Carla passou o dia procurando um médico público para atestar a condição dele. No entanto, os delegados Marco Aurélio e Cassiano disseram que isso era desnecessário, já que o juiz eleitoral mandaria Garotinho para a prisão de qualquer jeito – o que ele efetivamente fez, ignorando o contato de um médico que a chefe da PF em Campos havia lhe enviado, contou Carla.
De volta às suas férias, a delegada soube que Marco Aurélio tinha determinado escolta pessoal de Glaucenir Oliveira, mesmo sem pedido formal. Posteriormente, o delegado esclareceu que o fez para "dar uma moral” para o juiz depois que o Tribunal Superior Eleitoral autorizou a ida de Garotinho para um hospital, sempre segundo o depoimento de Carla.
Já na época, Carla Dolinski protestou, mas Marco Aurélio disse que, como chefe substituto, poderia determinar o que quisesse, e só deixaria de fazê-lo se ela voltasse das férias. Ela voltou, e a escolta terminou, disse.
À ConJur, o juiz Glaucenir Oliveira chamou as acusações da delegada federal de "factóides criados para atacar a Justiça". Segundo ele, nada do relato da advogada é verdade ou faz sentido. Trata-se apenas, de acordo com o magistrado, de uma tentativa da defesa de Garotinho de atacar suas decisões. "Uma coisa é falar, outra é apresentar provas — e isso ela nunca apresentou, porque esses ditos fatos nunca aconteceram", afirma.
Glaucenir aponta que, em janeiro, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro arquivou investigação contra ele, Manhães e os delegados Marco Aurélio e Cassiano com base na declarações da chefe da PF em Campos.
Na ocasião, o desembargador Carlos Santos de Oliveira, relator do caso, entendeu que não houve usurpação de competência — tanto que o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro e o TSE confirmaram que a 100ª Zona Eleitoral do Rio deveria ser responsável pelo processo. Além disso, o desembargador avaliou que não há, nos relatos de Carla, nada que elementos que configurem abuso de autoridade do juiz, do promotor e dos delegados.
O promotor Leandro Manhães preferiu não se manifestar. Já a Superintendência da Polícia Federal no estado não respondeu à ConJur até a publicação desta reportagem.
Advogados criticam
Três advogados criminalistas que defenderam Garotinho no caso afirmaram à ConJur que as declarações da delegada federal demonstram que o processo contra ele foi fraudulento.
Rafael Faria, que deixou o caso alegando que o ex-governador estava sendo vítima de lawfare (uso abusivo do Direito para deslegitimar ou incapacitar um inimigo), declarou que Garotinho foi condenado antes de o processo começar. “Desde o inicio do processo, o ex-governador Garotinho já estava com o destino selado. A minha a saída da causa se deu pela reconhecida parcialidade do juízo”, disse.
Já Fernando Augusto Fernandes contou que o depoimento de Carla comprova o que ele já havia alegado em pedido de Habeas Corpus ao TSE: houve burla ao princípio do juiz natural. Essa manobra fraudulenta, destacou o criminalista, foi repetida em outra acusação contra o ex-governador — de recebimento de recursos ilícitos da JBS.
Nenhum deles acusa Glaucenir de participar da manipulação dos destinos do processo, como se denota do depoimento de Carla.
“Há uma escolha do juiz Glaucenir de Oliveira, que tem praticado abusos, como a retirada de Garotinho de um hospital, prisões e afronta a decisões superiores incluindo injúria aos ministros", afirma Fernando Fernandes. "Do grupo de autoridades que abusam e perseguem o grupo político, participa o juiz Ralph Manhães e o promotor Leandro Manhães. A democracia não pode permitir que autoridades se utilizem de seus cargos para perseguir grupos políticos, burlando o princípio do juiz natural e acumulando poderes.”
Nessa mesma linha, Reinaldo Santos de Almeida disse que o processo criminal eleitoral contra Garotinho "é repleto de nulidades, a começar pela incompetência e parcialidade do juízo".
"O juízo atuava como verdadeiro inquisidor, interrogando pessoas que sofreram conduções coercitivas na condição de 'testemunhas', para vedar-lhes o direito de consultar um advogado e de exercer o seu direito constitucional de defesa, pelo uso do direito ao silêncio como privilégio contra autoincriminação, por exemplo", apontou o criminalista, destacando que prisões foram usadas "como forma de tortura e intimidação" para obter delações informais.
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Fonte:ConJur