Ao melhor modo colônia, Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro busca importar para o Brasil mais uma coisa que não deu certo nos EUA
Recentemente estive no Chile de férias e passar por Santiago sem uma visita no Museu da Memória e dos Direitos Humanos é uma daquelas coisas indesculpáveis que faria em minha vida. Fui ao belo prédio de arquitetura brasileira localizado no centro da capital e visitei esse poderoso lugar, que invoca sentimentos de dor pelo passado, alerta para o presente e inspiração para o futuro. Logo na entrada, parei em frente ao relatório da comissão da verdade do país, o qual em suas primeiras páginas destaca um longo capítulo sobre poder judiciário, fiador da sanguinária ditadura de Pinochet. Sem o Judiciário, diz o relatório, a ditadura deixaria de ter um grande amigo de todas as horas, que não apenas agiu com decisões e flexibilizações de direitos de acusados, como também fechou seus ouvidos para os insistentes avisos de defensores, defensoras, ativistas de toda sorte sobre as perversas consequências da escalada do arbítrio, uma vez que sequer os tratados internacionais assinados pelo país estavam sendo respeitados.
O museu é uma beleza e contém muito mais informação. Mas gostaria de ficar nessa primeira parte por ela ter relembrado a situação peculiar da resistência jurídica crítica no grande universo de discussões abrangidas pela Lava Jato. Há anos, advogados, advogadas, juristas críticos em sua maioria apontam dia após dia abusos cometidos pelo sistema de justiça, sobretudo pelo ex-juiz Sergio Moro e o Supremo Tribunal Federal no assunto. Relativização da presunção de inocência, supercompetência, condenação sem provas, relação com a mídia, nomeiem as que preferirem. Eu vou falar um pouco aqui sobre a delação premiada e seu filhotinho que está nascendo: o plea bargain.
A delação foi uma prática e um assunto muito debatido e há algum tempo diversos juristas apontam sua fragilidade enquanto prova. Na forma como ela é concebida e praticada no país, o delator não teve compromisso com a verdade, brincou com as “verdades” que o acusador queria ouvir e obteve grandes ganhos por sua cumplicidade com quem hoje apenas é ministro da Justiça do Jair Bolsonaro. Vale relembrar, por exemplo, de Léo Pinheiro. Na sequência: o dono da empreiteira OAS foi preso para delatar, em sua delação afirmou que Lula era inocente, a delação travou e somente prosseguiu após ele trocar de advogado e acusar Lula sem qualquer documentação digna de prova. Foi o suficiente para ser citado de cabo a rabo na sentença de Moro do Triplex, receber uma pena mínima e ver hoje seu genro como o Presidente da Caixa Econômica Federal. Mas que grande negócio!
Presidências de bancos públicos à parte, a delação foi o maior circo jurídico e midiático dos últimos anos. Não havia um Jornal Nacional que deixasse de passar em sua primeira hora cenas de delatores. O que se percebeu foi que a delação é um meio de prova rápido para ser consumido nos jornais, cômodo para os investigadores que querem provar suas próprias teorias, nem que para isso tenham que “forçar a barra”, e um míssil contra quem era delatado, não importando, nem por um instante, se havia provas que embasassem o que se afirmava aos acusadores e era transmitido à noite para milhões de telespectadores. No caso da Lava Jato, ainda, se verificou uma ótima forma para prender, com base em delação, quem estava em primeiro colocado na disputa eleitoral para a presidência. Os que o prenderam hoje compõem o governo do opositor, um sujeito apontado mundialmente como um dos mais racistas e homofóbicos líderes mundiais e cujo filho não consegue explicar um cheque de seu motorista para a primeira dama.
Foi (e ainda é) uma grande farra que envolveu o ex-juiz, procuradores da força tarefa e advogados de defesa “especialistas em delação”. A um, veio o cargo de Ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e o que mais o futuro lhe reservar; a outros, palestras sobre “ética” em country clubs, empresas e igrejas evangélicas, além de campanhas parlamentares por leis que aumentem o poder de sua própria carreira; já aos defensores, teve muito dinheiro para quem participou da farra das delações, como também muita aparição midiática para comentar, “de forma sóbria”, as sucessivas estripulias de Curitiba. Foi uma festança, mas a Lei do Psiu vigente após a eleição do ex-capitão começa a baixar o tom estridente de antes.
Aí que me vem à cabeça o Chile e a comissão da verdade do Governo Pinochet. Foram diversos juristas que denunciaram a delação, como tantos que alertaram que ela iria se tornar algo pior. Sabemos que esses juristas não se sentam na bancada da Globonews, pouco são convidados para Congressos de Bancos, Terceiro Setor, não são campanhas de Ongs internacionais de direitos humanos, mas graças às redes conseguiram disputar, ainda que minimamente, a narrativa imposta. Nesse sentido, copio o que escrevi abril de 2016:
O futuro é algo que já se percebe em julgamentos espalhados pelas cortes em todo país. Delações premiadas importadas diretamente da “República de Curitiba” para operações menores contra servidores públicos, casos de tráficos de algum certo impacto e algum outro caso que seja de certa complexidade para acusação e juiz. A experiência se espalhou como um vírus, mas somente atingirá seu ápice quando for aplicada no varejo, no balcão da Defensoria Pública de todo país.
No dia em que isso ocorrer – e ele está cada vez mais próximo – pode pegar o que resta de direito de defesa e descartá-lo no lixo mais próximo. Não será necessário ser advogado de defesa criminal, fazer uso da retórica e do contraditório. Bastará ser um bom mercador, vender seu peixe meia-boca por um preço alto e deixar a batata quente para que outra pessoa incumbida da defesa do delatado se vire, sem qualquer chance de se defender. Mero teatro cuja tragédia será assistida por quem deixou a delação por último.
Bom, o que antes eram favas contadas, agora é uma realidade. Como uma de suas primeiras medidas, o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, Sergio Moro, defendeu a importação e implementação do plea bargain., o filho da delação premiada.
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No Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Frederico de Almeida desenvolve a pesquisa sobre institutos jurídicos que são importados dos Estados Unidos para países de Terceiro Mundo, como também sobre mentes que por lá vão estudar e voltam com a última moda para implantar no país colonizado de origem. A pesquisa aponta algo curioso: essa importação acontece costuma produzir rigores e efeitos drásticos na institucionalidade do país importador, o qual aplica a invenção norte-americana de uma forma que não é aplicada por lá.
No campo do direito, são várias importações recentes: teoria da cegueira deliberada, delação premiada e, agora, o plea bargain. Em poucas palavras, o plea bargain é a delação premiada da Lava Jato levada para o varejo do país. Trata-se da negociação de depoimento e pena estabelecida entre acusado e acusador. A negociação não é pareada, afinal o acusado caso seja submetido ao rigor da sentença tem contra si a ameaça concreta de anos e mais anos de prisão. De outro lado, se o acusado admitir a culpa e/ou disser aquilo que “sabe” (leia-se: aquilo que o acusador quer ouvir), há a promessa de pouco tempo preso ou até mesmo a liberdade. Geralmente, dizer “o que sabe” implica em acusar outras pessoas, mais interessantes aos olhos e vontade do acusador. Do ponto de vista do acusador, a segurança de êxito na justiça criminal é muito alta e cada vez mais alta ao passo que direitos e garantias são relativizados.
O método é bastante aplicado nos EUA e responsável por 97% do encarceramento na chamada “guerra às drogas” (que mais parece guerra às regiões pobres e negras, como afirmam muitos). Grande parte das condenações significou a prisão de pessoas inocentes que simplesmente não tem condições materiais e nem chances para se contrapor ao sistema de justiça. Bem por isso, trata-se de um instituto jurídico sob forte crítica e questionamento público, estando cada vez mais em descrédito. A quem se interessar pelo debate, vale assistir o documentário “a 13ª Emenda”. Vale lembrar que o sistema carcerário é algo histórico para manutenção de desigualdades raciais e sociais e manutenção de castas.
Como boa e velha colônia, as Terras de Santa Cruz gostam mesmo de comprar caro o que lá está sendo depreciado e seu novo ministro da Justiça – de relações históricas com os EUA – busca o sistema encarcerador para o país de superlotação carcerária, ao mesmo tempo em que insiste na política de drogas produtora de injustiça e mortes. Era só o que faltava para aprofundarmos as chagas do sistema criminal e atrasarmos ainda mais o desenvolvimento cidadão. O denuncismo no varejo não vai tornar mais justa a condenação, nem fará o consumo diminuir (na melhor das hipóteses, será produtor de um imenso pomar de laranjas nas cadeias), mas ficará moderno aos olhos dos iluminados juristas salvadores do país. A diferença é que, ao contrário do que aconteceu com a delação, no plea bargain penso que será difícil a hipótese de um acusado receber como recompensa a Presidência da Caixa Econômica Federal.
*Brenno Tardelli é Advogado e Editor de Justiça na CartaCapital.
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