Ricardo Motta Pinto, da Universidade Federal de São João del-Rei, afirma que o Brasil precisa repensar matrizes econômicas e energéticas para evitar um colapso ambiental

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Manifestantes protestam em frente à sede da Vale, no Rio de Janeiro.PILAR OLIVARESREUTERS
BREILLER PIRES/ EL PAÍS
São Paulo

Professor da pós-graduação em geografia na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), o ecologista Ricardo Motta Pinto Coelho reuniu alunos de sua turma assim que soube do rompimento da barragem da Vale e se deslocou a Brumadinho para acompanhar de perto as repercussões do desastre. Diante dos trabalhos de resgate e as tentativas de contenção dos rejeitos, os estudantes presenciaram, da pior maneira possível, os ensinamentos do professor sobre os impactos da mineração no meio ambiente. “A matriz econômica do Brasil levou nossos ecossistemas ao limite”, afirma Pinto Coelho.

Ao longo de dois anos, ele monitorou os desdobramentos da tragédia de Mariana e concluiu que a impunidade joga a favor das mineradoras envolvidas em crimes socioambientais. Além de cobrar punição à Vale, o ecologista também reivindica maior fiscalização sobre a atividade mineratória e políticas de incentivo à economia verde.

Pergunta. Após mais um rompimento de barragem em Minas Gerais, é possível dizer que o caso de Mariana não deixou lições?

Resposta. A solução do desastre em Mariana foi incompleta. Ainda há praticamente tudo por fazer. Não se resolve uma tragédia desse porte apenas distribuindo bolsa com salário mínimo para as pessoas afetadas. A maioria dos desabrigados não foi ressarcida. E o rio Doce continua poluído. É muito cedo para falar sobre as causas do acidente de Brumandinho. Mas, nas poucas horas em que passei às margens do rio Paraopeba, o que eu mais ouvi foi a palavra “impunidade”. A população tem certeza de que os responsáveis pela tragédia ficarão impunes.

Ricardo Motta Pinto Coelho, ecologista e professor da UFSJ.
Ricardo Motta Pinto Coelho, ecologista e professor da UFSJ.REPRODUÇÃO

P. O que difere o rompimento de Brumadinho da tragédia de Mariana?

R. Os rejeitos representam pouco menos da metade da quantidade de lama que foi liberada na barragem de Fundão. Mas o drama humano em Brumadinho é muito maior. Eu vi muitas pessoas sem informações sobre familiares desaparecidos. Presenciei a aflição das equipes de resgate tirando vacas e animais do brejo. Outro fato que diferencia esse desastre do de Mariana é que o rio Paraopeba está muito próximo da barragem. Em Bento Rodrigues, o rio Doce estava a quase 100 quilômetros de distância.

P. Por que mineradoras de faturamento bilionário como a Vale ainda são vulneráveis a rompimentos de barragem?

R. O balanço da Vale [a empresa registrou lucro líquido de 18 bilhões de reais em 2017] é um agravante. Embora não tenha alcançado o patamar de outros anos, o preço do minério de ferro voltou a subir. No afã de alcançar lucros ainda maiores, em função da retomada das exportações, a empresa negligencia questões de segurança. Acidentes como o de Brumadinho acontecem devido a uma somatória de pequenos erros. Uma companhia como a Vale, dominante no mercado em Minas Gerais, precisa ser mais transparente no aspecto ambiental, que não segue o mesmo rigor de seus mecanismos de controle financeiro. Laudos e relatórios firmados pela empresa são uma caixa-preta. O poderio econômico da Vale rompe resistências a seus interesses em todas as esferas de governo, do municipal ao federal. Por causa do oligopólio, os prefeitos de cidades mineradoras ficam de mãos e pés atados à dependência da empresa [60% da receita anual de Brumadinho provêm dos royalties da mineração].

P. Como os Estados podem se tornar menos dependes da mineração?

R. É preciso diversificar a matriz econômica. Mudar o paradigma da política macro. A indústria brasileira está sucateada. Por sua vez, as cadeias produtivas de commodities dependem de uso excessivo da água. O Brasil, na verdade, é o maior exportador de água do mundo. E faz isso por meio da pecuária, da celulose e do minério, que gastam centenas de toneladas de água em sua produção. Nossas reservas são mais escassas do que os governos alardeiam. Basta observar o déficit hídrico em praticamente todas as regiões metropolitanas do país. Estamos muito atrasados na gestão de recursos hídricos. Do que adianta sediar o Fórum Mundial das Águas se não conseguimos cuidar dos nossos rios? Não passa de quermesse ecológica, que serve de palanque para políticos. Há várias décadas eu ando pelas estradas fazendo pesquisas. Nossos rios estão depressionados. As lagoas urbanas, severamente poluídas. E os gestores públicos se mostram incapazes de reverter esse quadro. Os governantes precisam ter uma postura mais proativa em relação ao meio ambiente. Menos Fórum Mundial e mais ação.

P. As iniciativas de preservação pelo país estão em xeque no Governo de Jair Bolsonaro, que já manifestou a intenção de flexibilizar a legislação ambiental?

R. Todos os governos, sem exceção, apertaram o acelerador da “economia marrom”, que gira em torno do petróleo, cimento, minério e agronegócio. Além da reorientação econômica, precisamos mudar também a matriz energética. A usina de Belo Monte, com aqueles mamutes lá no meio da Amazônia, é um crime ambiental que poderia ter sido evitado por uma política mais responsável de gestão dos recursos ambientais. A sociedade brasileira não respeita o meio ambiente, que nunca esteve entre as prioridades de nenhum governo. Os órgãos públicos, salvo raras exceções, são absolutamente despreparados, sem qualificação técnica para lidar com os trâmites exigidos pela área. Os ecossistemas estão no limite. Chegou a hora de barrar a expansão do agronegócio e da mineração no Brasil para estimular a economia verde. Enquanto o meio ambiente não se tornar prioridade, os desastres serão cada vez mais frequentes.

“O que acontece na mineração é que entregaram a chave do galinheiro para a raposa. Quem faz o monitoramento ambiental são as empresas”

P. Na tentativa de se esquivarem de multas e punições rigorosas, empresas responsáveis por desastres ambientais geralmente usam o argumento de que se deve preservar suas atividades para não gerar desemprego...

R. Acontecia a mesma coisa com os movimentos de abolição da escravatura. Os opositores diziam que a escravidão era essencial para a economia. A alegação de que mineradoras não podem ser punidas por proteção a empregos não passa de desculpa para jogar sujeira debaixo do tapete.

P. Uma queixa antiga de empreendedores é a burocracia para se obter licenças ambientais. Acelerar esse processo não implicaria em riscos ainda maiores ao meio ambiente?

R. Retardar a concessão de licenças não é uma boa política. Tivemos um exemplo disso em Minas Gerais. Para reduzir os impactos da pecuária no meio ambiente, o Ministério da Pesca incentivou a criação de peixes, que também impacta a natureza, mas de forma menos agressiva que o agronegócio. O país quintuplicou a produção do pescado, mas Minas ficou para trás porque travava as licenças ambientais. O ideal é avaliar e conceder licenças no menor prazo possível. Mas, para que funcione bem, fiscalização é fundamental. O que acontece na mineração é que entregaram a chave do galinheiro para a raposa. Quem faz o monitoramento ambiental são as empresas. Isso tem de mudar. O Governo precisa fiscalizar e realizar auditorias nas mineradoras, o que demanda, necessariamente, investimentos em meio ambiente para qualificar as equipes dos órgãos responsáveis.

P. Você falou sobre a sensação de impunidade. Teme que o caso da Vale tenha desfechos semelhantes ao de Mariana?

R. O rompimento da barragem em Brumadinho foi crime. Mas não culpo o atual governador [Romeu Zema] nem o antecessor [Fernando Pimentel]. Aconteceu no Governo dele, mas aconteceria em qualquer outro governo, porque não há, no Brasil, políticas públicas que tratem a questão ambiental com a devida seriedade. Assim como em Mariana, onde até hoje o distrito de Bento Rodrigues não foi reconstruído, o embate para responsabilizar a empresa será pesado. A Vale prefere investir nos melhores advogados do mundo a pagar a conta do desastre. E o Estado não está preparado para essa batalha. Se estivesse, não teria acontecido outra catástrofe em tão pouco tempo. Ainda estamos na idade da pedra quando o assunto é meio ambiente.