Um juiz de férias coordena a desobediência de um delegado da Polícia Federal a um desembargador. Enquanto isso, membros do tribunal atravessam prerrogativas para anular uma decisão legítima do plantonista. O objetivo: impedir um habeas corpus concedido ao favorito nas pesquisas presidenciais. Não aconteceu numa ditadura bolivariana ou islâmica. Aconteceu no país da normalidade democrática, onde só militares aplicam golpes.

Tudo previsível, lamentavelmente. A avalanche de inconstitucionalidades vem desabando há meses, anunciando futuros sombrios, enquanto o garrote se normaliza a cada arbítrio da Lava Jato. Aconteceu de novo e de novo passará incólume.

O que de fato sobressai no episódio é o desnudamento irreversível do caráter político da prisão de Lula. As autoridades vociferando ordens de seus retiros dominicais e turísticos. A mobilização desesperada e quase clandestina, o enfrentamento indisciplinado, o atropelo de ritos. A afoiteza das maiores instâncias da Justiça, lutando contra o tempo como se estivessem metidas numa invasão de alienígenas famintos.

Fizeram parte da tragicomédia os circunspectos especialistas midiáticos, inventando bobagens sobre "juízo natural" e "competências", vociferando jargões vazios, distorcendo normas e conceitos num estranho surto de ignorância jurídica. Então descobrimos que os textos legais são demasiado ambíguos para as combativas "agências de checagem".

A selvageria ideológica da Cruzada Anticorrupção foi instrumentalizada pelo coronelismo eleitoral. Uma espécie de loucura sem loucos que protege as decisões judiciais e entorpece os debates públicos sobre elas, obstruindo a percepção e a denúncia dos absurdos cometidos contra Lula. O delírio ultrapunitivista se confunde com o ódio ao ex-presidente, servindo de pretexto inclusive para criminalizar tentativas de preservação de seus direitos constitucionais.

Não havendo esperança de vitória nesse deserto de regras, o combate possível é romper a ilusão do jogo ritualístico, derrubar o manto doutrinário que esconde a ditadura togada. Triunfos técnicos da defesa de Lula, como no blefe dos recibos, apenas forçam mudanças de estratégia condenatória. Já o imbróglio simbólico do habeas corpus arrancou os guardiões da Lava Jato da pantomima do rigor processual. Despiu-os de seus personagens republicanos.

Decerto virá resposta à altura da infame provocação petista. Afinal, garantindo sua própria impunidade e legitimando a si mesmo, o Regime Judicial de Exceção tem poderes ilimitados. Nisso, contudo, ele se torna vulnerável. Quanto maiores os esforços empenhados para destruir a influência de Lula, maior a derrota da obsessão imperial dos tribunos e mais óbvia a disparidade entre o indivíduo e as corporações que o martirizam.

O cunho eleitoral da investida também prejudica seus protagonistas. Alimentada pela ameaça do lulismo, a radicalização fanática aproxima os déspotas da Lava Jato do polo reacionário da disputa presidencial. A julgar pelas pesquisas, a certa altura os monstros se unirão em torno da causa comum. Então, alinhados ao atraso, rejeitados por todas as correntes partidárias, receberão do país aquilo que tentam outorgar a Lula. Tarda mas não falha.

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