Nas alamedas do parque Municipal, a pintora aprendiz ouvia com atenção o mestre explicar como se deve pegar no pincel e qual a melhor espessura da tinta. O instrutor era Guignard, e a aluna, Yara Tupinambá, que durante seis anos teve lições com um dos maiores nomes do modernismo brasileiro.

Hoje, aos 87 anos, a mineira, nascida em Montes Claros, é dona de uma extensa trajetória permeada por fases distintas. Seu nome costuma ser lembrado quando se fala em arte figurativa – há quem torça o nariz para o termo –, mas a pintora também se sobressaiu pela realização de murais em décadas passadas – são mais de uma centena deles espalhados por diversos lugares de Minas Gerais.

Em carta de 1952, Guignard previa que só teria seu valor reconhecido depois de cem anos. Ele estava enganado – suas obras conquistaram a graça do mercado ainda no século XX. A exposição que a galeria Errol Flynn inaugura hoje também objetiva que a mesma previsão não se aplique à artista. Com 106 obras, a mostra “Yara Tupinambá: Uma Vida na Arte”, estreia a nova sede da casa, que sai da Savassi e vai para o Lourdes, e completa duas décadas de existência em 2020.

Há várias formas de se apontar o trabalho de Yara, e a exposição pretende provocar o visitante a compreender essa diversidade. A curadora quis promover um passeio agrupando os trabalhos em séries, como os desenhos de Ouro Preto transfigurados pela fantasia de Yara, como ela gosta de dizer, as figuras da cultura popular, os tradicionais símbolos mineiros, como igrejas e oratórios, e as conhecidas e bucólicas paisagens do Estado. “Tudo o que é símbolo para nós (mineiros) me interessa”, explica a artista.

Possivelmente a maior exposição a ela dedicada, a ocasião se apresenta como importante iniciativa de valorização do trabalho da muralista, que nem sempre é alvo do reconhecimento merecido, segundo avaliam alguns curadores e críticos. “Ela deveria ser mais valorizada. Pela trajetória e qualidade que tem, a obra dela ainda é barata”, avalia o curador Errol Flynn Júnior, que confia que a exposição irá colocar os trabalhos em outro patamar. “Pode ajudar as pessoas a mudarem o conceito sobre a artista. Vai dar uma revigorada”, prevê.

O experimentado crítico de arte Olívio Tavares de Araújo, mineiro radicado em São Paulo e amigo da artista, faz análise próxima. “Decididamente, existe uma arte que está na moda, e outra, não. Então, a Yara, como todos os artistas de pintura figurativa e tradicionalmente fixada na tela, não é uma coisa da moda. Não é uma artista que esteja nem possa estar na crista da onda”, pontua.

Araújo assina um dos três textos que integram o caprichado catálogo da exposição – os outros são de Carlos Perktold e Enock Sacramento. O crítico situa a importância das pinceladas de Yara para a continuidade na formatação de uma paisagem mineira, algo que começa exatamente com Guignard, o mentor de Yara, reconhecido por suas paisagens líricas e sonhadoras. “Ela continua a tradição de uma representação de uma Minas mais poética e prosaica”, explica.

Ainda que alguns de seus murais estejam em prédios públicos – como o “Inconfidência Mineira”, na reitoria da UFMG –, a poética de Yara nem sempre teve contornos solenes. Na década de 70, quando convidada a pintar um mural na igreja matriz da cidade de Ferros, a imagem de Adão e Eva nus desagradou os moradores. “Eles se esqueceram da Capela Sistina”, provoca a pintora. A igreja no Vaticano é repleta de afrescos feitos por grandes nomes do Renascimento.

A fala afável de Yara também se desnuda se questionada sobre sua prática muralista. Quando começou a fazer murais em série, a pintora vivia sendo contratada por construtoras para criar uma obra em seus projetos. “Hoje em dia, parece que os decoradores não querem que entre nada que perturbe a decoração, então eles colocam sofá, cadeira e pronto”, reclama.

A pintora esboça entusiasmo ao falar de outro contato marcante em sua vida. Yara foi amiga de Drummond, que chegou a dedicar a ela um poema. “Ele visitou uma exposição minha no Rio em 1972, me escreveu essa poesia. Eu mandei uma gravura, a gente se escrevia e falávamos ao telefone”, relembra.

Em meio a tantas telas, as inéditas devem chamar atenção do visitante da exposição. Na série “Parques”, Yara apresenta algumas áreas verdes da capital. Em “O Artista Visita Meu Ateliê”, ela se apropria de temas de Matisse, Gauguin, Monet e Bonnard.

As artes circenses rendem outra série em exibição. “Agora, meu próximo interesse são as casas velhas da Lagoinha”, revela.

Mesmo com 87 anos, Yara segue pintando diariamente.

Mostra marca novo endereço da galeria

A mudança de endereço da Errol Flynn Galeria de Arte é uma boa novidade na cena local. Além de instalações mais amplas, a casa pretende expandir também seu escopo de atividades e continuar promovendo exposições individuais, coletivas e seus quatro leilões anuais, conforme adianta Errol Flynn Júnior. “Queremos aperfeiçoar. Pretendemos realizar cursos de história da arte e sobre estilos e tendências diversos”, diz.

Se o esmerado catálogo da exposição de Yara Tupinambá for um padrão, realmente as ambições da galeria serão auspiciosas.

“Fizemos esse investimento e enviamos esse catálogo para mais de cem galerias em todo o Brasil”, informa o curador.

Yara elogia o novo espaço da galeria, mas avalia que a cidade carece de mais investimento nas artes visuais. “As galerias estão trabalhando a seu modo, mas ainda são poucas para uma cidade do tamanho de BH”, opina a artista.

Serviço

O quê. Exposição “Yara Tupynambá: Uma vida na arte - Obras de 1957 a 2019”.

Quando. Até 5 de julho; funcionamento: 9h às 19h (seg. a sex.); 9h às 13h (sáb.).

Onde. Errol Flynn Galeria de Arte (rua Curitiba, 1.862, Lourdes).

Quanto. Entrada gratuita.